28 novembro, 2008

355. perda

enquanto se barbeava ele notou uma mancha vermelha na têmpora. à noite, na escuridão, porém, ele não percebia, ela brilhava como se fosse uma brasa incandescente. a mãe ao ver aquilo achou que ele tinha voltado a fumar. nada disse - quem era ela, fumante durante maior parte da sua vida, para repreende-lo agora? que autoridade tinha sobre um homem com idade mais que suficiente para escolher os seus vícios? - mas estranhamente, ela também se deu conta, nada no quarto indicava que ele estivesse a abusar do fumo. nem cheiro, nem cinzas, nem bitucas, nem nada...
quando por volta da meia-noite ela ouviu o baque surdo achou que o saco de serragem que ele costumava esmurrar para conter a ansiedade tivesse despencado do teto. o silencio que se seguiu ou a sua intuição de mãe alertou-a de que algo estranho estava a acontecer.

apreensiva deixou de lado a bíblia onde revisitava os salmos, calçou as pantufas que ganhara dele por ocasião do dias das mães e de camisola foi até o quarto do filho averiguar.
ao acender a luz sentiu fraquejar suas pernas cheias de varizes. o grito elaborado nas suas entranhas saiu abafado, sufocado como se ela trouxesse pressionado contra o rosto o travesseiro onde há pouco descansava a cabeça.

o que viu, ali, estendido no solo com um furo profundo no lado esquerdo da cabeça parecia o seu filho. tinha o seu corpo, roupas, feições. estaria morto? ferido? não havia sinais sangue nem cheiro de pólvora.

quis por um momento debruçar-se sobre aquele... cadáver e chorar seu desespero, sua perda, mas estranhamente o que sentiu foi nojo, asco. a intuição outra vez, ou algo que o valha, semeou no seu âmago a sementinha da dúvida. seria aquele o seu filho amado? não, não podia ser. nada a garantia que fosse. aquilo era só uma pele frouxa desprovida de sustentação óssea como um guarda-chuva sem hastes. coração de mãe não se engana.

sem saber bem o que fazer ela correu desesperada até a janela que percebeu escancarada. nenhuma brisa. nada que incomodasse a imobilidade das cortinas azuis desbotadas. lá fora, nas mãos de deus, com a exceção de um ou outro boêmio que trocasse o dia pela noite, todos estavam a dormir profunda e descuidadamente. à iluminação amarelada da rua se sobrepunha a treva noturna. por tras das nuvens, divisavam-se os contornos de uma lua triste.

354. cena urbana

o casal se beija apaixonadamente. já não se preocupa em esconder o que se tornou público.

"ainda assim te amo", diz o outro, o preterido, à distancia, como se ela pudesse ouvi-lo.

por uma fração de segundos, e para o seu próprio espanto, vem-lhe nítida a cena que assistiu pela TV na manhã daquele mesmo domingo no programa voltado para os aficcionados aos automóveis - programa que ele, amante incondicional e declarado das possantes máquinas, raramente perdia.

"esse cara com quem me trais", desqualifica, "talvez nem guiar saiba” ( costuma vê-los sempre a pé a passear de mãos dadas pelos parques da cidade)

A reportagem era sobre atropelamentos. utilizaram na simulação bonecos desnudos e desengonçados destes usados como manequins em loja de departamentos. impressionara-o o impacto de um carro de meia tonelada a 100 km por hora contra um corpo adulto de aproximadamente setenta quilos.

acelera forte. precisa por um fim naquilo tudo.

28 outubro, 2008

353. vestígios

no lugar do terreno baldio onde há alguns meses antes abandonou o filho recém-nascido, agora um arranha-céus com centenas de janelas envidraçadas as quais que ela está condenada a esfregar com força como se apagasse os vestígios do crime cometido. Quase sempre chora. E se alguém desconfia, desconversa: a culpa é do componente químico do detergente.

352. senha

descobriu sua vocação: praticar exorcismos on-line. aos espíritos imundos arrancados à clientela atormentada aprisionava-os em arquivos zipados. um dia um hacker adolescente houve por surrupiar-lhe a senha e foi um pandemônio. pandora, aprendeu com o erro, não é de fato um nome la muito recomendável para uma senha.

20 outubro, 2008

351. cleptomania

No ginásio ainda ele roubou-lhe um beijo. Depois, mais tarde, roubou uma rosa e lhe deu de presente. Não demorou tomou de assalto o seu coração. Agora envelhecem juntos e ele deu para se queixar: "parece que cumpro pena"

350. destino

Dentro do vagão do metrô, horário de pico, a cigana insiste em ler o meu destino por dois reais. Deixo. Ela enfia a nota amarfanhada entre os seios murchos, sorri com dentes de ouro e sussura: Jabaquara.

349. eleição

Apertou as dezenas e a cara do candidato escolhido não apareceu no visor. Irritou-se e – como fazia quando moleque ao jogar fliperama – esmurrou furioso a urna eletrônica. Tilt. A imagem surgiu enfim duplicada. Tava explicado: o candidato tinha duas caras.

348. conceitos

celibatário convicto, reviu rapidamente seus conceitos - o barco já imergia. e abraçou-se àquela boneca inflável.

347. chorare (miniconto)

um dia teve que partir deixando tudo para trás. homem já feito e ciente de que - como lhe ensinara o pai que do pai dele aprendera - homem não deve chorar, manteve-se firme, resoluto em sua decisão; embora por dentro sentisse o coração apertado. na saída da cidade conseguiu uma carona justo em um caminhão de cebolas que vinha de Cabrobó. daí até a capital, sem poder impedir que se desatassem os nós de todas as suas mágoas, chorou feito criança.

346. bispo flaggman


345. star wars


344. filiatrix


16 setembro, 2008

336. Elvis

Antes de morrer, Adalberto, o taxista, chamou a esposa e confidenciou-lhe um último segredo:

“ Elvis não morreu”

“Grande novidade”, ela disse.
“Esperava que me contasse que me traía com a Cida Cabeleireira, aquela vaca”

Ele riu e tossiu e pediu calma – a voz era um fio. Nem sombra do vozeirão que jurava ter tido.

“Você não bota fé, não é? Mas eu posso provar”

“Provar o que?”

“Que Elvis não morreu, ora!”

“Está bem, homem. Vá lá, prove”

Adalberto fez uma pausa e revelou-lhe:

“Eu sou Elvis, Marilda. Elvis Aaron Presley”


Marilda não queria acreditar mas rendeu-se quando ele lembrou-a de como, com aquele peso todo, conseguia fazer o diabo com os quadris. E e de como quando, no meio da noite, sonâmbulo, costumava se expressar em inglês fluente com sotaque do Tennesee, assustando-a .

Como veio parar em Santo Inácio do Pinhal, no entanto, nem ele próprio conseguia explicar; já que por aquele tempo, admitia, as drogas pesadas é que estavam no comando dos seus atos.

Diante dos olhos mareados da esposa, ele finalmente entregou os pontos. Descansou. E ela,como sempre fazia, às vezes por pirraça, e para não perder o costume, contrariou-o:

“Você estava errado, Adalberto. Totalmente equivocado. Elvis está morto, sim. Mortinho da Silva”

27 agosto, 2008

335. hai kai n.7

de cabeça para baixo
o morcego soletra
inscrições rupestres

334. hai kai n.6

sapinho degusta
um mosquito da dengue
seu dia de herói.

333. hai kai n.5

sem encontrar resistência
o sal da maresia
corrói a vontade dos canhões.

332. hai kai n.4

o bambuzal vibra
ao sabor do vento
e desorienta os morcegos.

331. hai kai n.3

estendido ao pé do ipê
o tapete de flores
recebe com honras o mendigo.

330. hai kai n.2

sombra no muro de arrimo
pantera ?
um gato - seu primo

329. hai-kai n.1

gaijin se esforça
capricha na letra
kanji invertido

328. as pernas do general

Por vinte e cinco anos e cinco dias as pernas compridas do general Tiburcio marcharam inseparáveis, na mesma disciplinada cadência. A esquerda, destemida como o dono à época, cedo o deixou a coxear: descuidada pisou numa mina anti-pessoal, se estraçalhou toda e virou lenda; já a segunda perna, cautelosa mas na definição de alguns covarde, decerto traumatizada pelo destino trágico de sua incauta irmã, não justificava a parte da calça que lhe cabia. Dedicou sua existencia ao amparo do dono. Desnecessario dizer que envelheceu com ele e sustentou resignada sua débil carcassa. Foi enterrada com ele com honras de heroi no mausoléu dos veteranos.

14 maio, 2008

327. reconstituição

aquele perito era um bom profissional mas exageradamente perfecionista. fato é que na reconstituição do crime o assassino, primário, acabou por tornar-se reincidente.

326. obra-prima

sexo masculino, vinte e quatro anos, classe média, condenado a três anos por falsificação (falsidade ideológica). o curso superior, porém, lhe dá direito a cela especial (o diploma da USP em letras góticas, orgulha-se, é sem dúvida o seu melhor trabalho).

12 maio, 2008

325. superpoder

o menininho rezava toda as noites pedindo que lhe fosse concedido pelo menos um dos poderes do super-homem. cresceu, desiludiu-se: virou prático de raio-x em um hospital público.
1º lugar no Concurso de Microcontos do site Papo de Quadrinhos (Abril/2009) http://papodequadrinho.blogspot.com/

324. cara e coragem

contava com exacerbado orgulho e à guisa de exortar os filhos à luta que viera e vencera com a cara e a coragem. não tinha coragem porém de confessar que mudava de cara sempre que os fins, por pérfidos que fossem, o justificassem.

323. a espiã de mil faces

capturada a agente do serviço secreto do vaticano, o inimigo não perdeu a chance de esbofeteá-la. e ela, fiel aos seus principios cristãos, como era de se esperar ofereceu-lhe a outra face, e a outra, e a outra, e a outra, e a outra, e a outra...

02 abril, 2008

322. o pequeno deus

faça-se a luz, ordenou prepotente como sempre o pequeno deus. sua voz de trovão de sonoplasta de radio-novela ecoou dentro da escuridão da casa, agrediu as paredes forradas por retratos antigos da familia, mas não surtiu o efeito esperado.
.
faça-se a luz! porra! repetiu irritado pressionando com força a verruga do interruptor que sabia onde se encontrava mesmo que estivesse de olhos fechados. e nadica de nada de luz .

desolado o mini-deus desabou sua obesidade sobre o sofá puído da sala cujo estofamento seu velho costumava torturar fincando sádico pontas de cigarro na esperança vã de arrancar-lhe confissões intimas de tempos imemoriais quando vivia a suspeitar que, sobre o maldito recheio de espuma, sua defunta mulher o traía com o açougueiro também já há décadas desencarnado.

daquele ponto à ínfima divindade foi concedido perceber que, na fina restia de claridade horizontal proveniente das lampadas de mercúrio que iluminavam a avenida lá fora e vazava a preencher a fresta, havia algo enfiado sob a porta que à sua passagem, minutos antes, talvez até tivesse pisado sem percebe-lo.

ergueu-se. movia-lhe agora uma curiosidade comum aqueles felinos dométicos que tanto detestava. foi até lá decidido, porém, até agachar-se para apanhar o envelope (era um envelope pardo, se pudesse ve-lo), viu dissipar-se como o fumo espesso das chaminés das velhas fábricas das imediações o ânimo de abri-lo. e se o tivesse feito descobriria sem surpresa que o velho decrépito torrara a grana que ele deixara para que pagasse as contas com cigarros, putas e uísque falsificado.

06 março, 2008

321. Uma Arma Quente (Tradução Livre)

HAPINESS IS A WARM GUN

John Lennon
(Tradução Livre de Francisco Pascoal Pinto)

Ela é não é aquele tipo da mina que perde tempo com conversa mole
Ela saca o lance e sabe como usar suas mãos delicadas
Como uma lagartixa que assente e bafeja o vidro polido e blindado.

O sujeito da 25 de março que vende espelhos e colar de contas para os índios usa coturnos velhos do seu tempo no 4o. BEC.*
Negaceia com o olhar enquanto faz um bico:
Suas mãos se ocupam em esculpir num sabonete de motel o corpo da mulher que já foi sua, que ele comeu e cedeu ao Patrimonio Histórico.

Preciso me garantir no arame, cara, que estou desabando
Caindo pedaço a pedaço ao longo da linha férrea que leva a Subúrbia
Preciso me garantir, senão eu danço.
Madre Superiora aperte o cano
Madre Superiora aponte o cano
Madre Superiora dispare o cano
Felicidade é uma arma quente
Felicidade é uma arma quente
Quando te abraço te espalmo não me protejo
Meu dedo roça e coça em teu gatilho
Não somos alvos, sei, ninguém vai nos atingir.

Porque a felicidade é uma arma quente.
Sim, sem dúvida é.
Ah, você não sabia, Mãe, que a Felicidade é uma arma quente?
Não?
*. 4o. BEC (Quarto Batalhão de Engenharia e Construção)

320. abissal

nunca sonhava pois sequer dormia. dedicava-se, como aconselhavam as escrituras, a orar e vigiar para não ser surpreendido.
uma noite, na escuridão liquida da fossa abissal em que custumava mergulhar, divisou um pequeno ponto de luz fosforescente e imaginou se não seria um daqueles seres esquisitos que só se encontram nas profundezas. não quis crer que sonhasse e esfregou os olhos uma, duas vezes. foi então que percebeu que estava sem o escafandro.

319. diálogo entre barras

- já há quantos anos aqui?
- quinze, quase dezesseis - respondeu o carcereiro.
- quando eu sair daqui pretendo escrever. e você?

318. aplicada

aplicada, riu enquanto passava a borracha em volta do braço para dilatar as veias. a avó costumava defini-la assim, com orgulho: uma menina aplicada.

317. festa

na festa dos descolados, eu deslocado.

29 fevereiro, 2008

316. memory

o elefante que sempre se orgulhou de sua prodigiosa memória agora deu para beber. acontece que a sua parceira fugiu com outro e por não conseguir esquece-la é que a maldiz (a memória)

315. equestres

venderam-lhe aquele cavalo como um legitimo andaluz ( entendia as ordens em espanhol). só depois é que ele se deu conta: o animal era paraguaio. e bilingue.

314. kali II

Kali nasceu com seis braços. Toda vez que ia à manicure gastava uma nota - mas em compensação botava a fofoca em dia e desabafava: "se os caras prestassem mais atenção nas minhas pernas..."

313. kali I

kali nasceu com seis braços. a mãe, do lar, crendo-se amaldiçoada pelos deuses caiu em profunda depressão. o pai, agricultor, homem prático, ao contrário, viu "naquilo" uma bênção.

15 fevereiro, 2008

312. cena urbana I

o semáforo demorava-se no vermelho. o carro era blindado e não havia nada que pudesse temer. o que ele não sabia era que o líquido que o menino molambento com o rodinho na mão derramou no para-brisa não era água. descobriria-o com olhos de pavor quando o segundo garoto, o que fazia acrobacias pirotécnicas, se aproximasse com um sorriso nos lábios rachados pelo frio do fim da tarde e uma tocha na mão .

311. perdas

perdeu a virgindade, o primeiro marido, o segundo, o trem da história, o das onze, o fio da meada, o medo de ser feliz, o juízo, a esperança e a vergonha sem jamais se queixar. os finais de telenovela, porém, ( quem ficou com quem?) eram sagrados. não os perdia por nada. no fim da vida encontrou a paz dos videos- tapes.

310. de amor e jogo

tomou um pé-na-bunda mas não se abalou. era um otimista incorrigivel e acharia rápido uma forma de consolar-se a si mesmo. "azar no amor, sorte no jogo", vibrou e dirigiu-se confiante ao Bingo Crosby disposto a arrebentar a banca. Ali apostou , perdeu e conheceu ana maria villari khaled prado, divorciada, vinte e dois anos mais velha, cheia da grana e de amor pra dar.

309. no lugar errado

no lugar errado, na hora errada quando anunciou-se o assalto. a policia cercou o local. tomado entre tantos como refém perguntou-se: por que eu? acaso, azar, destino... analisou probabilidades, avaliou chances, perdeu-se em estimativas- nunca fora bom com os cálculos. lá fora, pelo altifalante, alguém propunha negociação pela sua vida. quanto valeria? quem dá mais?estranhamente não sentiu medo. talvez porque não tivesse nada a perder além do fim do filme da sua vida que lhe passava pela cabeça. cabeça contra a qual premiam o frio e curto cano da arma.

308. o contrabandista de órgãos

Capturado, Bertoldo foi apresentado à imprensa e ao grande público como o mais infame contrabandista de órgãos de que se tinha notícia. Por conta dos seus atos vis foi levado a juri popular e condenado por unanimidade e sem apelação à pena capital.
No dia seguinte à sua execução, nossa valorosa polícia, sempre diligente, voltou a campo e capturou também os receptores de órgãos, não menos culpados. Com eles, as provas do delito: Um container inteiro de Yamahas de última geração.

307. o atalho

para cortar caminho tomou um atalho. o que cruzava a linha do trem. do outro lado, para sua surpresa e estranheza, a esperavam a mãe, a avó, o avô e outras pessoas bem mais antigas em quem ela angustiada reconheceu traços de sua própria fisionomia.

306. conto policial indiano

na busca ao desaparecido ao longo das margens sagradas do ganges, para desespero dos legistas, o inspetor ganesh ordenou o resgate de mais um corpo - até aquela hora, quinze para o meio-dia, já era um total de dezessete.