12 março, 2009

380. auto da covardia

Estava só na plataforma. Naturalmente esperava. O intervalo entre um trem que viria e outro que passara um pouco antes que ali chegasse parecia uma eternidade. Pensou que podia se matar sem que ninguém o impedisse. Pensou também que podia continuar indo e vindo de casa para o trabalho, do trabalho para casa, percorrendo dia após dia aquela mesma linha, igual a um dejeto fecal que percorresse os intestinos da cidade.

Quando o trem apontou ele deu um passo atrás. Nada que cause estranheza pois nunca fora voluntário para nada. Sabia muito bem e como poucos – uma qualidade? - o valor da covardia.

Como se ele não existisse, ou fosse invisível, o trem passou batido, direto – ou foi sacanagem de Caronte, o condutor??

Ele podia jurar que o vira rindo, sarcástico.

11 março, 2009

379. golem

Depois de um curso básico de oleiro, o rabino Saul Getz Mendes da Fonseca, de Lisboa, moldou finalmente o seu primeiro Golem, ser animado de matéria inanimada. E seguindo o passo a passo da Cabala, escreveu com caprichosa caligrafia em hebraico a palavra mágica Emet em sua testa para poder ativá-lo.

“Ah!”, bateu em sua própria testa “Quase que ia me esquecendo! Preciso inflar em suas narinas o hálito da vida”

Fê-lo e o Golem abriu seus tristes olhos de argila.

“Parla! Parla!”, ordenou o rabino, exultante.

E o Golem falou:

“Andas a comer muita cebola, heim Rébi?”

378. generosidade

Os seios? Sonhei com eles, ansiei por eles, pedi-os. E não me foi dado sequer tocá-los. Foram-me negados ambos. O decote – odiei-o – em nada generoso comigo.

377. brinquedos

Ia pegar mal dar uma geral naquele velhinho aparentemente inofensivo vestido de Papai Noel, mas ele o fez. Tinha que ser profissional, fazer valer a autoridade que lhe fora conferida desde que dela não abusasse. E protagonizou uma cena inusitada entre tantas outras em Sampa àquele Natal. Uma multidão juntou-se. Começavam os protestos quando ele espalhou no piso do shopping o conteúdo do saco que o velho carregava às costas: eram apenas brinquedos. Sim, muitos brinquedos. Ninguém podia duvidar que de fato fossem brinquedos. Para pervertidos, é verdade, mas... brinquedos . Consolos fálicos de todos os tamanhos e espessuras e texturas para solitários. Vibradores de última geração. Cremes para penetração made in china. E cópias pirateadas de filmes pornográficos. Utilitários para todos as taras.

376. o último espetáculo

O Circo Bem-Hur fora à falência. Era o último espetáculo. Depois, como diz o jargão, era cada um por si e Deus por todos. Entrada livre e ninguém compareceu. Onde o respeitável público?? – o coraçãozinho das crianças, sabia-se, tinham sido há tempos arrebatados pelas mídias eletrônicas e games. Tristeza às pencas, muita tristeza.

O domador de feras, homem outrora enérgico, não conseguia sequer domar seu desanimo monstro; o mágico já não se iludia: só definhava, sumia aos poucos; a trapezista acometida de súbita labirintite mal se mantinha de pé para o derradeiro número;e o palhaço, num canto, chorava inconsolável e borrava a maquilagem. Nesse clima de velório só o anão foi capaz de um ato de grandeza: foi lá, soltou os bichos e ateou fogo à lona.

As labaredas logo tocaram o céu e iluminaram a noite. A cidade inteira acorreu ao local feito insetos em volta de uma lâmpada. Um espetáculo inesquecível.

O pipoqueiro vendeu como nunca.

375. verso

"Amargo era o travo do beijo que não me deste ", escreveu o poeta no guardanapo e pediu mais um Expresso. A garçonete corou como se ele lho tivesse dito e perguntou:

- Amargo?
- O beijo? – ele quedou surpreso.
- O café.
- Ah!