10 julho, 2009

458. acordo de cavalheiros

No horário de visitas no hospital, em vez do filho e da esposa , quem veio foi o demônio. Trajava um jaleco branco e bem passado, a máscara cirúrgica ocultando a face. Ele todavia pode identificá-lo pelos olhos serenos e pela protuberância dos pequenos cornos sob a touca de proteção.

“Fiz o que pude para salvar teu corpo, juro!”, desculpou-se. E ele viu sinceridade naquelas palavras.
“Assine aqui. Por favor”, estendeu-lhe a prancheta e uma Montblanc.

Assim, conforme haviam combinado trinta anos antes em um cassino em Las Vegas, ele cedeu-lhe os direitos pela alma que já se lhe escapava.

457. um miniconto de ficção científica

De uma hora para outra deu para se expressar em uma língua morta e a escrever hieróglifos ininteligíveis. Um caso digno de estudo. A comunidade científica ao analisá-lo, por consenso, concluiu que ele simplesmente nascera séculos adiante do seu tempo. Os adeptos da doutrina espírita, por outro lado, insistiam em que se tratava de um raro caso de regressão irreversível. Ninguém atentou para o fato de o botão seletor daquela estranha máquina de lavar largada em um canto do porão de sua casa piscar intermitentemente a indicar os séculos a que se podia retroagir.

456. em dobro

Mirei-a nos olhos. Neles, refletida duplamente, vi a alça de mira da minha arma. Deus te dará em dobro, ela ainda disse.

07 julho, 2009

455. utilidade

Depois do AVC , para provocá-lo, questionavam-no se não se sentia homem pela metade. Dava o troco de imediato. Sua mão direita, crispada, com apenas o dedo médio em riste, tinha lá sua utilidade.

454. cala-te!

"Cala-te!", disse o Rei . Foi uma sentença. E o bufão tagarela daquele dia em diante teve de fazer rir com mímicas e gestos.

453. lenda urbana I

No teto do consultório podia-se ver uma réplica perfeita do firmamento como quando era visto pelos antigos navegantes.
“Para nossas crianças urbanas que não têm a oportunidade que tivemos de contemplar a olho nu o universo em toda a sua magnitude ”, explicava orgulhoso o velho pediatra.
Estranhamente, depois de cada consulta com ele, os pais começaram a descobrir nos dedos dos filhos pequenas protuberâncias endurecidas e esbranquiçadas e todos eles, sem exceção, tiveram que recorrer a um dermatologista.

452. o despertador

Quando acordou o despertador ainda estava ali. E apenas ele e mais nada naquele quarto de alvas paredes caiadas. Maldito objeto metálico cromado e inanimado travado em suas engrenagens - que era à corda, antigo, feito para interromper sono e sonhos. Sem o impulso essencial seus ponteiros sobrepostos marcavam a intemporalidade das coisas e dos seres. Quis apalpar os bolsos, procurar por um canivete ou chave ou trinco com que pudesse desmontá-lo, mas não percebeu que isso não era possível já que estava nu; e ao descobrir-se assim sentiu-se profundamente exposto e fragilizado como quando foi abandonado na roda dos enjeitados da Santa Casa da Misericórdia. Desesperou-se. Teve uma crise que alternava choro e riso que cessou quando sentiu náuseas e não verteu a última refeição. Dentro si, suspeitava, havia apenas pequenos troços sem consistência, que podiam ser ou não resquícios de uma tristeza mal-digerida . O despertador ainda estava ali, intacto, a ocupar o espaço que lhe cabia dentro daquele quarto sem saída (pensava em saída porque queria fugir dali o mais rápido que pudesse). Tinha pressa mas seus movimentos eram lentos como se movimentasse dentro de um aquário, como se fosse um peixe nu que sonhasse com a amplidão de um oceano. O segredo, a chave que lhe abririam portas imperceptíveis ao seu olho só podiam ser encontrados na combinação daqueles números romanos dispostos em círculo no mostrador. Era uma hipótese a considerar. Mas também não se podia descartar a possibilidade de que as respostas estivessem nele mesmo misturadas àqueles já citados pequenos troços amorfos que por dentro sentia.O despertador inutilizado talvez nem exista como objeto, pensou. Pode ser um símbolo, a representação terrena do deus Chronos, um signo, um significado do que não consigo compreender. Um tempo esgotado, diluído, reduzido ao pó terminal de que falam as escrituras. Num ímpeto ele atirou o despertador contra uma daquelas paredes brancas como túmulos e ao vê-lo não encontrar resistência nem força gravitacional que lhe abrandasse a trajetória e ricochetear e tomar a direção do teto, e depois descer ao piso, e traçar feixes retos ligando ângulos e superfícies como um cometa no vácuo das galáxias, tudo compreendeu. Aquele despertador era o seu coração.