27 novembro, 2012

Conto da Purificação


 

Poema da purificação


Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.


Carlos Drummond de Andrade
 

O primeiro corpo, encontraram-no uma bela manhã de sol forte enganchado num galho da velha ingazeira que, qual um braço esguio parcialmente submerso, movia-se em nervoso ritmo tocado pela corrente. Misericórdia vegetal para com o cadáver. O braço da ingazeira piedosamente o recolhera.

 “Um menino!”, afirmaram uns. “Uma menina”, contestaram outros. Como quando um ser vem ao mundo e é dado à luz. Tinha  a idade em que as diferenças entre meninos e meninas são quase imperceptíveis. Por isso mesmo o pomo de discórdia..

 Morto, morta. Disso todos tinham certeza.  Afogamento, era a causa mais provável.

 Samaritanos prestos logo acorreram: As lavadeiras, os pescadores... E os inevitáveis curiosos, gente desocupada.

 À força de vigorosas  remadas a canoa encostou, e a criança foi recolhida. O processo de putrefação ainda não se fazia sentir. Hematomas azulados marcando a  pele branca como o leite, talvez provocados por colisões contra as pedras em um trecho anterior do rio conhecido como porto das pedrinhas. Nas omoplatas, dois talhos enormes. Fendas abertas na carne que ninguém conseguia explicar.
Convocassem o vigário.
 
 A igreja lá no alto. O galo do campanário tocando com sua crista rubra o céu.
 Um rapazola de pernas rápidas  galgou as pedras que martirizavam penitentes. Pela urgência esmurrou as grossas portas chamando por frei António.
 Inútil. Que surda é a luxúria. Insolúveis  os mistérios gozosos.  Encerrado na sacristia, os santos encobertos, o  padre sucumbia à tentação da carne tenra.
 O rapaz não se deu por vencido e tangeu os sinos desentocando do covil o lobo.
O que o biltre viu em seguida, a ninguém foi dado ver. E tudo aconteceu por mais seis vezes. Para cada inocência perdida nas mãos de frei Antonio  o rio trazia um novo anjo morto.
Intimamente o culpado quis se enforcar na corda do sino. Quis atirar-se da torre da Igreja. Quis misturar veneno ao sangue de Cristo. Não achou coragem.
 Seus dias estavam contados. E seu nome inscrito já na caderneta negra dos impuros.
 Ao entrar a quaresma,  acometeu-o estranha moléstia. Secou. Havia ainda o desejo, a ânsia, os apetites sórdidos, mas o corpo os rejeitava. E frei António padeceu entrevado por dez anos, sob o olhar do arcanjo São Miguel. Nem quando roubaram o santo para que a estiagem cessasse, ele sentiu melhora.
Um dia, simplesmente, desapareceu. Um buraco escuro tragara a casa paroquial  levando-o junto. Um buraco como uma boca abissal faminta  e escancarada  que ninguém conseguiu vedar.

Nenhum comentário: