Poema da purificação
Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.
Carlos Drummond de Andrade
O primeiro corpo,
encontraram-no uma bela manhã de sol forte enganchado num galho da velha
ingazeira que, qual um braço esguio parcialmente submerso, movia-se em nervoso
ritmo tocado pela corrente. Misericórdia vegetal para com o cadáver. O braço da
ingazeira piedosamente o recolhera.
“Um menino!”, afirmaram uns.
“Uma menina”, contestaram outros. Como quando um ser vem ao mundo e é dado à
luz. Tinha a idade em que as diferenças
entre meninos e meninas são quase imperceptíveis. Por isso mesmo o pomo de
discórdia..
Morto, morta. Disso todos
tinham certeza. Afogamento, era a causa
mais provável.
Samaritanos prestos logo
acorreram: As lavadeiras, os pescadores... E os inevitáveis curiosos, gente
desocupada.
À força de vigorosas remadas a canoa encostou, e a criança foi
recolhida. O processo de putrefação ainda não se fazia sentir. Hematomas
azulados marcando a pele branca como o
leite, talvez provocados por colisões contra as pedras em um trecho anterior do
rio conhecido como porto das pedrinhas. Nas omoplatas, dois talhos enormes.
Fendas abertas na carne que ninguém conseguia explicar.
Convocassem o vigário.
A igreja lá no alto. O galo
do campanário tocando com sua crista rubra o céu.
Um rapazola de pernas
rápidas galgou as pedras que
martirizavam penitentes. Pela urgência esmurrou as grossas portas chamando por
frei António.
Inútil. Que surda é a
luxúria. Insolúveis os mistérios
gozosos. Encerrado na sacristia, os
santos encobertos, o padre sucumbia à
tentação da carne tenra.
O rapaz não se deu por
vencido e tangeu os sinos desentocando do covil o lobo.
O que o biltre viu em
seguida, a ninguém foi dado ver. E tudo aconteceu por mais seis vezes. Para
cada inocência perdida nas mãos de frei Antonio
o rio trazia um novo anjo morto.
Intimamente o culpado quis se
enforcar na corda do sino. Quis atirar-se da torre da Igreja. Quis misturar
veneno ao sangue de Cristo. Não achou coragem.
Seus dias estavam contados. E
seu nome inscrito já na caderneta negra dos impuros.
Ao entrar a quaresma, acometeu-o estranha moléstia. Secou. Havia
ainda o desejo, a ânsia, os apetites sórdidos, mas o corpo os rejeitava. E frei
António padeceu entrevado por dez anos, sob o olhar do arcanjo São Miguel. Nem
quando roubaram o santo para que a estiagem cessasse, ele sentiu melhora.
Um dia, simplesmente,
desapareceu. Um buraco escuro tragara a casa paroquial levando-o junto. Um buraco como uma boca
abissal faminta e escancarada que ninguém conseguiu vedar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário