02 abril, 2008

322. o pequeno deus

faça-se a luz, ordenou prepotente como sempre o pequeno deus. sua voz de trovão de sonoplasta de radio-novela ecoou dentro da escuridão da casa, agrediu as paredes forradas por retratos antigos da familia, mas não surtiu o efeito esperado.
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faça-se a luz! porra! repetiu irritado pressionando com força a verruga do interruptor que sabia onde se encontrava mesmo que estivesse de olhos fechados. e nadica de nada de luz .

desolado o mini-deus desabou sua obesidade sobre o sofá puído da sala cujo estofamento seu velho costumava torturar fincando sádico pontas de cigarro na esperança vã de arrancar-lhe confissões intimas de tempos imemoriais quando vivia a suspeitar que, sobre o maldito recheio de espuma, sua defunta mulher o traía com o açougueiro também já há décadas desencarnado.

daquele ponto à ínfima divindade foi concedido perceber que, na fina restia de claridade horizontal proveniente das lampadas de mercúrio que iluminavam a avenida lá fora e vazava a preencher a fresta, havia algo enfiado sob a porta que à sua passagem, minutos antes, talvez até tivesse pisado sem percebe-lo.

ergueu-se. movia-lhe agora uma curiosidade comum aqueles felinos dométicos que tanto detestava. foi até lá decidido, porém, até agachar-se para apanhar o envelope (era um envelope pardo, se pudesse ve-lo), viu dissipar-se como o fumo espesso das chaminés das velhas fábricas das imediações o ânimo de abri-lo. e se o tivesse feito descobriria sem surpresa que o velho decrépito torrara a grana que ele deixara para que pagasse as contas com cigarros, putas e uísque falsificado.