24 fevereiro, 2010

546. memória da dor

A dor fantasma. Já ouvira falar que se dava naqueles que tem pernas ou mãos ou braços amputados. A tal memória da dor. Agora sentia-a ele próprio. E no coração que lhe tinham levado embora.

545. joão (conto)

João nunca faltava ao trabalho, jamais adoecia, era o tipo do funcionário exemplar. Vivia, comia e respirava a fábrica. Vestia a camisa, ou melhor, o macacão, que para ele era como se fosse uma segunda pele e, ao longo dos anos, esforçava-se por mostrar-se engrenagem importante no funcionamento da linha de produção onde atuava. Quando chegou a época de se aposentar, não o fez - decidiu continuar trabalhando com o mesmo amor e entusiasmo do primeiro dia; embora a sua saúde já não colaborasse muito para que sua produção se mantivesse satisfatória. Na concepção de João, porém, ele se havia tornado insubstituível e estava de certa forma convencido de que sem ele o mecanismo não funcionaria a contento. E como naquele ambiente totalitário ter concepções, opiniões, fazer conjecturas ou pensar era algo perigoso e por si só já acusava em quem tivesse este tipo de comportamento um desvio, uma avaria, João foi encontrado morto. Morrera tarde da noite no pleno exercício de suas funções. Fazia serão para cumprir atingir as metas de desempenho.

Pela manhã, antes de começar o expediente, um funcionário do RDR (Recursos de Decujus Robóticos) desmontou suas partes , embalou-as em um pequeno container cinza que etiquetou com o alfanumérico XTRK33. Depois conduziu-o ao arquivo morto e o acomodou junto de outros containeres de antigos funcionários colegas seus desativados. Por exigência fiscal seus restos permaneceriam ali por cinco anos, após o que seriam finalmente triturados e reciclados e transformados em novos funcionários que, pela herança genética, esperava-se, fossem tão eficientes quanto o fora João.

544. sugestão

"Vai cuidar da sua vida!", ela disse ao dispensá-lo. Mas ele não seguiu seu conselho. Preferiu refugiar-se no trabalho pois muito mais que a ela ele amava o que fazia: maquiar cadáveres, cuidar da morte dos outros.

543. o cara (miniconto)

“Eu sou o cara”, costumava se vangloriar. E um dia ao dizê-lo na hora e no lugar e para a pessoa errada, foi executado friamente.
“Aquele coroa não era o cara!”, repreendeu o contratante ao pistoleiro de aluguel. “ É nisso que dá confiar em amadores”

Ricardo Delfim, Claudio Brites (Editor) e Ademir Pasquale - No lançamento do Contos Imediatos.

Eu, Sergio P. Couto, Roberto Causo, Ramiro Giroldo e Marcello Simão Branco. Na Martins Fontes da Paulista.