05 agosto, 2009

478. juramento

Em visita ao Cemitério de Arlington descobriu que tinha ali quinze homônimos seus. Jurou pela alma deles que ia desertar.

477. paz

Os soldados de ambos os lados do conflito interrompem excepcionalmente os combates àquela tarde para assistir pela TV à final do campeonato de futebol. O mundo comemora um momento de paz em meio à guerra encarniçada. Aos quarenta minutos do segundo tempo, porém, o jogo é cancelado por causa da violência incontrolável das torcidas organizadas.

476. milagro

06:30 min. Mens insana in Corpore Sano, invento de fazer cooper na Praça Barão de Japurá. Deus surpreende quem madruga e sou abençoado com um milagre: o mendigo cadeirante que habita o playground levanta-se e anda. Em direção ao bar.

475. minuto de silêncio

Antes que a bola rolasse, o árbitro bigodudo de olhos insanos determinou que se fizesse um minuto de silêncio pelo grande cartola que se intitulou um dia senhor de ambos os tempos regulamentares, intervalos e prorrogações. Como ninguém confirmou a notícia de que Deus estava realmente morto, corpulentos agentes do manicômio de Munique invadiram o campo e lhe puseram ao árbitro uma camisa de força.

474. luuanda (homenagem a José Luandino Vieira)

Dentro da cubata*, nos furos do zinco, coxo João Gonçalves espia lua que caminha no céu e ri. “Lua anda”, encanta-se o coxo. “Luanda". Sakua!** Aluado este monandengue!*** Via também lua andar quando pisou mina ali mesmo, no lixão, próximo ao musseque****. Bum! Lua ficou encarnada sangue dele.
cubata - barraco
sakua! - Eita!
monandengue - criança, moleque
musseque - favela

04 agosto, 2009

473. hai kai n.25

a algarávia cessa
os trovões de abril
respeito

472. hai kai n.24

léguas adiante
na encosta cíclope
chora um olho d'água

471. hai kai n.23

sem encontrar resistência
o sal da maresia
corrói a vontade dos canhões

470. hai kai n.22

o bambuzal vibra
ao sabor do vento
e desorienta os morcegos

469. hai kai n.21

à deriva
sonha com o deserto
a agua-viva

468. presença

Estava no Orkut, no Twitter, no Facebook, nos mais recônditos sítios do cyber-espaço, e fisicamente já não estava entre nós. Reduzido à mínima unidade virou um holograma.

467. janelas

Ao despertar abriu a janela que percebeu dava para outra janela que já estava aberta e que dava para uma terceira através da qual via mais uma, escancarada, onde outra se encaixava qual moldura de um quadro com uma janela em close, entreaberta, onde sua vista já então se perdia. Fechou os olhos, bafejou, abriu-os novamente e, como supunha, as vidraças daquelas janelas todas se tornaram baças. Só então ensaboou o rosto e começou a fazer a barba que lhe crescera durante a noite.

466. pacto

Conheceram-se em um lugar inusitado: um hemocentro onde foram se oferecer como doadores. Foi, como dizia o bardo porralouca, uma paixão cruel, desenfreada. Até cogitaram um pacto de sangue, mas acharam melhor deixar pra lá pois concordavam que em tempos de crise deve-se evitar toda espécie de desperdícios.

465. david

Da janela do hotel em Bangcoc o velho ator estranhou mesmo que o dia tivesse nascido cinza. E que as coisas todas do mundo com exceção das túnicas alaranjadas dos jovens monges que cruzavam a praça estivessem em mil tons diferentes de cinza. Seus olhos estavam cansados. Suas pálpebras pesavam como os sinos de um templo e no entanto tudo que ele via movia-se sem que lhes ouvisse o som. Considerou que também a ele lhe faltassem as palavras . Logo escureceu. Lanternas opacas pontilharam a noite. E quando o velho ator já não mais esperava, de uma viela estreita ou de dentro dele mesmo, do rio que se esgueirava qual serpente logo adiante ou do sorriso bonito das moças que distraiam os turistas, veio um acalanto antigo, morno, que não lhe era estranho:

“Descanse, gafanhoto! Descanse!”, ouviu, quando já se acreditava privado de qualquer sentido.