26 novembro, 2009

539. hai cai 40

O caminho só se faz andando
Ensina o mestre
Aos discípulos que o vão carregando

538. hai cai 39

Prova de coragem, exame
Para o curumim
É cutucar enxame

537. hai cai 38

Lua alta
Refletida no rio
Tarrafeio-a.

536. de anjos e demônios (a Ana Maria Shua)

Asmodeus , o demônio regente do sexo, interpôs-se malevolamente entre aquele jovem casal: ora deixava a esposa frígida como a neve das montanhas e com cefaléias enlouquecedoras; ora arrefecia com uma ducha de água fria a excitação efervescente do marido. E assim começaram as brigas que acabariam com aquele casamento se um anjo do Senhor não fosse enviado em seu socorro. Este anjo a quem coube tão nobre missão era leal, destemido e com sua poderosa espada de luz não demorou em despachar o demônio de volta aos domínios abissais de Lúcifer. Era, como o são os anjos, também tão divinamente belo que ambos, esposa e esposa, por ele acharam de se apaixonar perdidamente. Estabeleceu-se aí uma situação no mínimo constrangedora. À distancia, do seu nicho de trevas, Asmodeus se divertia com tudo aquilo. Quem conhece a natureza dos humanos, estes seres imprevisíveis?

535. nó

O grito do gol que não houve atravessado na garganta. Um nó que ele sabia só se desataria depois de tomar duas conduções e quatro branquinhas no boteco lá da vila; ou progressivamente, ao longo da semana, até a próxima rodada do campeonato.

534. realização

Sentindo-se não realizado profissionalmente o chaveiro do bairro baixou as portas do seu negócio e se mandou para a Amazônia. Lá abraçou o Santo Daime. Aprenderia a abrir as portas da percepção.

533. cruzeiro

Cruzeiro para as Ilhas Virgens. Impuseram-lhe: ou dá ou desce. Ela mirou o azul calmo dos Caribe e achou que era tarde para aprender a nadar, então relaxou. E gozou.

16 novembro, 2009

532. 1929

Tarde da noite já, Ariosto Bequimão está só e, meticulosamente, manuseia sua arma: uma pistola cromada, cabo de madrepérola, presente do seu vizinho e parceiro comercial, o Conde Francisco Matarazzo. Desmontar, limpar, lubrificar... para ele é uma espécie de terapia. Ao fazê-lo esquece por alguns momentos dos seus problemas financeiros que o Crack da Bolsa de Nova Iorque não poupara ninguém. Suas mulheres, esposa e amante, já o abandonaram carregando o que podiam. Seus amigos, ou aqueles que se apresentavam como tal quando ele ainda dispunha de dinheiro e prestígio, arredaram pé - só os credores, hienas famintas, não desistem de bater à sua porta.
Ao certificar-se de que a arma está descarregada, Bequimão inevitavelmente lembra-se de sua falecida mãe a adverti-lo para que tomasse cuidado ao brincar com armas. “Superstição”, ri. “Como pode o diabo enfiar um cartucho aí sem que se perceba?”. Não responde. Não é de botar fé em crendices. Descontraído, lembranças de sua vida logo afluem: casamento, viagens, pequenas aventuras, irresponsabilidades... Lembra-se de uma vez ter feito roleta russa com alguns colegas da faculdade. Loucura. Estavam bêbados e riam muito. Felizmente ninguém se machucou. O estampido seco que se ouviu não surpreende ninguém. Aquele seria um ano triste.

531. anéis

Tomou-lhe a mão esquerda fria entre as suas e, disfarçadamente, tentou retirar do seu dedo gordo a aliança de ouro bem fornida, porém gasta pela sucessão das tantas bodas que comemoraram juntos. Se da vida nada se leva, concluiu, de nada mais haveria de servir à sua defunta esposa aquele maldito elo dourado que lhes algemara as almas por meio século. Não conseguindo, lamentou em voz baixa: uma pena. Mas logo reconfortou-o a certeza da existência em algum lugar de uma apólice de seguros acenando com uma revoada de notas de cem, cinqüenta... novinhas. Revirou a casa, quase botou abaixo as paredes sisudas entre as quais procriaram, cresceram e se multiplicaram e envelheceram e nada encontrou. Irritou-se. Blasfemou. Perdeu o que lhe restava de compostura. Deu para acusar a prole pelo sumiço do documento. Ameaçava deserdá-los a todos. Como um imóvel avariado que ameaçasse desabar interditaram-no. Mingou. A aliança delgada frouxa dançando no dedo. À filha solteirona coube o fardo de cuidá-lo. Elisa não se lastima: vive de espera. Seu príncipe tem a cara de Dom Sebastião. Para passar o tempo inventa coisas inúteis como tricotar cachecóis de lã que nunca serão usados naquele sertão agreste onde vivem confinados.

530. dilema

acordou sentindo-se um ser desprezível. E com um dilema: "sou um homem ou um rato?". ao questionar-se assim não ocultava a clara intenção de provocar um terremoto, um cisma que fosse no seu mundinho cômodo, um vendaval que intimasse o seu íntimo a enfim assumir de vez uma personalidade ímpar, sólida, compacta.sem que pudesse se controlar saiu de casa cabisbaixo arrastando o sobrepeso do corpo, os olhos a varrer os desníveis do pavimento de velhas pedras portuguesas e fez ponto no mesmo bar de sempre, o Oráculo. ali, entre a cerveja gelada e a porção generosa de provolone, foi aos poucos se desencorajando de convencer-se a si mesmo da urgente necessidade de aprender, antes tarde do que nunca, a conviver com suas próprias diferenças e com aquela sua cruel e inusitada dualidade.

529. prevenção

diagnosticado que sofria de mal do coração, para prevenir-se de quaisquer sobressaltos, deu para ler edições de jornais da semana anterior. tudo corria muito bem até que descobriu, com óbvio atraso e nenhuma surpresa, o seu próprio necrológio.

528. o fim

O condenado acreditava que renasceria das cinzas do último cigarro do último pedido feito ante o pelotão de fuzilamento. Enquanto fumava, divertia-se com a inquietação do comandante do pelotão que marchava de um lado para outro, mãos para trás, suando em profusão. E alongava seus últimos minutos fumando sem nenhuma pressa.
– Não se afobe Coronel. Eu podia ter pedido um charuto – pilheriou soltando uma baforada. O outro não riu. Apenas ia e voltava. Consumiu-se o cigarro. Resoluto o oficial sacou do sabre e ordenou:
– Preeeeeeeeparar!! Seus comandados juntaram os calcanhares e levaram aos ombros as armas.– Apoooontar!!Apontaram. Quando o enchia outra vez os pulmões para ordenar que atirassem ouviu atrás de si um tropel dos cavalos e uma ordem:
– Cancele a execução, Coronel! Voltou-se. Fez-lhe sombra a figura de um general estropiado com um braço na tipóia. Confuso, sua imediata reação foi perfilar– se e prestar continência.
– É o fim, Coronel – disse o comandante, a voz embargada. – Resta-nos a rendição. Empreste-me sua espada para que... – parecia pedir desculpas – Pois perdi a minha.
– Sim, senhor!
Triste e diligentemente o Coronel embainhou a espada, desafivelou o cinto e entregou o conjunto ao seu superior.

527.hai cai 37

Língua de fora
Gravata rósea
Cão a rigor.

526. hai cai 36

Sem cachorro, no mato
Improvisou na fábula
E caçou com gato.

525. hai cai 35

Cachorros latem com atitude
Em latim vulgar
Por estas latitudes.

524. hai kai 34

Que mais o bicho-homem teme?
Bala perdida, vírus letal, um par de cornos
Ou a patroa todo mês de Tepeeme?

523. zona

Seu time do coração na zona do rebaixamento, a moça da zona azul multou seu carro, sentiu-se indefeso. Zona. Como detestava esta palavra. Na avenida Radial , rumo à Zona Leste da cidade , chorou copiosamente. Como quando era criança chamou pela mãe mesmo sabendo que ela não viria; pois a guerreira estava na Zona batalhando para lhe proporcionar uma vida melhor que a que ela tivera.

522. a arte da guerra

De pijama e quepe o velho general traça estratégias. Enquanto seus netos, após curta trégua, munidos de fofos travesseiros de pena de ganso recomeçam as provocações.

05 novembro, 2009

521. os filhos do rey

Aos seus filhos gêmeos e ciclopes, batizou-os o Rey como Jorge Luis e Luiz Vaz e ordenou que lhes fosse dada esmerada educação que dessa forma se ampliasse a sua limitada visão. Foi lhes ensinado grego, latim e humanidades. Nas duas primeiras áreas ambos se mostraram alunos exemplares; já na última, jamais conseguiram por com sucesso arreios ao seu instinto primitivo, e ficavam fora de controle, principalmente na quaresma, ao farejarem no ar qualquer indício de carne humana.

520. água e fogo

Era pra ser uma missa de corpo presente mas o avião caíra no mar e nem todos os corpos foram resgatados. A idéia de colocar no caixão os objetos de que ele mais gostava – a mala fora encontrada em uma praia - fora da viúva.

Do fundo da igreja, disfarçado, ele assistia a tudo com um sorriso de enorme satisfação sob a barba postiça. Seu plano tinha funcionado perfeitamente. Só lamentava pela camisa do seu time do coração, autografada pelo maior ídolo, relíquia do inesquecível tetracampeonato. Paciência. O fogo do crematório é indiferente às paixões.

519. crustáceo

Na solidão lúgubre do banheiro imundo daquele restaurante chinês do bairro oriental o velho guaiamum imaginava que qualquer sorte que tivesse dali em diante aceitaria como sendo uma bênção, pois já estaria no lucro.

518. casamento coreano

Quando o senhor Kim, funcionário público em Seul, casou-se com a senhora Kim, enfermeira, deram-lhe setenta vezes sete palmadas nas palmas dos pés. Quando ela o deixou para viver com o senhor Kim, vendedor de oratórios budistas, foi muito mais dolorido.

517. morte delivery

O Joystick era um REM HG 600. Como num vídeo-game ele apontou, apertou o gatilho e agüentou firme o coice poderoso da arma. O pássaro de aço atingido em cheio pegou fogo, rodopiou e se espatifou ali no campinho onde ele costumava bater bola com a galera quando ainda era um inocente olheiro. Virou o herói do dia. Era o cara. O chefe do Morro dos Macacos, em pessoa, condecorou-o com a Ordem do Mérito dos Primatas Loucos e Cheirados. Fama efêmera: na manhã seguinte entregaram-no lá embaixo, varado de balas,dentro de um carrinho de supermercado, para causar efeito psicológico no inimigo.

516. o intruso

O intruso não lhe deu esperanças nem adeus e depois de se fartar com o seu corpo continuou a freqüentar todas as noites a casa dos seus sonhos. Para afastá-lo, descobriu um dia, precisava cultivar pesadelos. Neles o monstro encontraria oponentes à altura.

515. figuras de linguagem

Seu corpo era terrivelmente sensível às figuras de linguagem e ele não podia evitá-las. Quando ouvia músicas antigas, por exemplo, seus cotovelos doíam tanto que tinha que tomar doses substanciais de analgésicos para poder agüentar o tranco. Ao pegar-se desconfiado de alguém ou de alguma coisa, invariavelmente se formavam atrás das suas orelhas de abano inquietas colônias de pulga. Nessas horas sentia-se um cão e não um homem. Outra vez, quando ao terminar um relacionamento que lhe parecia promissor e seu par lhe disse para que sumisse da sua vida; sentiu , mais que mágoa ou ressentimento, doer-lhe os glúteos como se lhe tivessem dado um pontapé.

514. reu confessa

Foi em Itacorubi, lá na Ilha, assistindo à Farra do Boi que tive a idéia, que tramei tudo. E não me arrependo não, Doutor. Aquela vaca teve por merecer. Sou assim: quando eu ponho uma coisa na cabeça vou até o fim. E quando me põem então...

513. o homem invisivel

A segurança da Enterprise Co. Fertilizantes estava em primeiro lugar. Tecnologia de ponta com câmeras de alta definição, alarmes e detectores associada a agentes especialmente treinados parecia torná-la inexpugnável. Nada ali, pensava-se, podia passar despercebido; exceto Raimundo, o auxiliar de limpeza, que na sua simplicidade, também não percebia que não era percebido. Todos os dias, inclusive aos sábados, Raimundo trafegava por todos os ambientes daquela fortaleza sempre munido de um balde, detergente, panos, e esfregões, sem deixar vestígios dele ou de outrem – era o seu trabalho. Entrava no ginásio, no refeitório, nas salas onde ocorriam reuniões confidenciais onde eram traçados intrincados planos de ação, e ninguém se dava por sua presença – quem iria dar atenção a um personagem tão iníquo, tão sem importância? E havia ainda outros Raimundos. E eram todos, como ele, seres invisíveis, translúcidos. Um dia Raimundo foi cooptado ( ele não sabia o significado do verbo cooptar) para ser espião de uma empresa concorrente. Os benefícios (tíquete restaurante, passe de ônibus etc. compensavam) E foi quando finalmente o notaram.

512. guam

O velho soldado japonês encarapitado no alto do coqueiro, tem os novos inquilinos da ilha sob a mira do seu fuzil. O vento que sopra do mar desta vez lhe traz fragmentos esparsos, farpas de vocábulos, que ele consegue identificar como sendo na complicada língua do inimigo que ele ouviu quando criança nos cinemas do bairro de Ginza em Tóquio; além do cheiro forte, atrativo, sedutor, das fêmeas (éguas louras) no cio. Mais que ódio sente desejo. Sob os trapos da farda, depois de muitos anos, seu membro desperta e enrijece e esboçava uma reação.

23 outubro, 2009

511. namorada, precisa-se

Não era bonito nem interessante, nem experiente nem rico. Talvez fosse inteligente pois sabia de muitas coisas que os outros não sabiam, e tudo cultura inútil de que se valia sempre para uma coisa: impressionar. Sabia por exemplo a altura do Monte Everest, o hino nacional do Nepal, a capital do Uzbequistão, o lateral direito reserva da seleção uruguaia na copa de 50... Não sabia no entanto quem era seu pai, nem que fora adotado ou que comeu de sobremesa no almoço. Mas com isso não se importava; o importante é que tinha um objetivo, um propósito, ou nas suas próprias palavras, uma missão. E precisava mostrar que era capaz do sacrifício que se exigia para cumpri-la. Em suma precisava arranjar uma namorada. Não virtual, que já às tinha às pencas. Nem imaginária, pois sua imaginação tendia ao perfeccionismo fortemente influenciada pelo cinema e era bem capaz de idealizar uma super-modelo. Precisava mas era de uma namorada real, de carne e osso, que chorasse e risse, menstruasse quinzenalmente e morasse no mesmo bairro para que não precisasse ir longe demais pedalando sua velha bicicleta já que tinha fobia de transporte público.

510. o osbtinado

Rudolph H. planejou meticulosamente por anos a fio como cruzar a temível cortina de ferro que vergonhosamente dividia o seu país. Entusiasmado e esperançoso, sonhava todas as noites com a aquela façanha cuja consecução com êxito seria por assim dizer a coroação justa dos seus desmedidos esforços. Quando finalmente elaborou o plano perfeito, Eles vieram e derrubaram o muro. Rudolph foi abaixo junto.
Tempos depois, porém, resolveu que não devia entregar os pontos assim tão facilmente. Convicto de que tal afronta ao seu sonho sem dúvida exigia uma devida reparação, Rudolph entrou com uma petição junto ao Ministério da Justiça do seu país. A burocracia daquele órgão público, porém, tem-se mostrado um empecilho de proporções quase instransponíveis. Vencê-la, superá-la, é agora a razão de viver de Rudolph, o obstinado.

509. sodade

Ouvia no radinho de pilha Saudades de Matão, mas sentia mesmo era saudade de Santa Ernestina, que ficava logo ali adiante.

508. fragmentos

O peito apertado, o nó na garganta...Queria explodir, estilhaçar-se, fragmentar-se em mil pedaços. Via diante de si naquele ocaso melancólico não o mar de Copacabana físico e real , mas um oceano revolto de impossibilidades. Tudo porque sempre fizera escolhas ruins e andara – para o desespero dos pais – em péssimas companhias. Agora já não tinha os pais a se acharem no direito de opinar sobre sua vida; todavia tinha impressão, quase certeza, de que andar consigo mesmo já era um péssimo negócio.

O desânimo que nem ao menos lhe empurra ao parapeito. Os dedos enrijecidos pela artrite agrilhoados perpetuamente em anéis. Os brincos de jade, as roupas de grife, os 120 pares de sapato, o violino de cordas arrebentadas... Dos objetos inanimados cuja função resume-se em domar sua compulsão perdulária e preencher seus vazios, o vaso chinês - vítima de bala perdida seus cacos se espalhavam sobre o tapete persa - era o que mais invejava.

507. no meio da noite

Telefonaram no meio da madrugada, ele atendeu sonolento e, do outro lado, lhe avisaram que ele tinha sofrido um grave acidente no cruzamento da rua tal com avenida tal. Sem ao menos trocar de roupa ele simplesmente pegou seu carro e dirigiu-se à toda para o local sem respeitar semáforo ou sinalização. No cruzamento da rua tal com a avenida tal havia um orelhão escarlate em cuja concha de acrílico se escondia o rosto de um corpo bem definido de mulher que ele não pode identificar pois, justamente nessa hora, perdeu o controle do carro.

506. nobre concisão

o Conde chamava-se Luís Filipe Maria Fernando Gastão de Orleans e Saxe-Coburgo-Gota. resumiu-se conciso: assinava d’Eu.

09 outubro, 2009

505. hai kai 33

girafa, menino
É periscópio
Sem submarino

504. função

funcionário fantasma, recebia e nunca aparecia na repartição. sentia-se um completo inútil até que decidiu escrever: virou ghost writer.

503. 25 de março

Choveu canivete aquela tarde. Suíço. Mas, olhando bem, verifiquei que eram apenas cópias bem feitas. E olhando melhor, certifiquei-me, não estava chovendo: a Federal é que dava um rapa nos últimos andares da tradicional Galeria Pajé justo quando eu passava lá embaixo.

502. metáfora

Era reconhecido mundialmente como um mago da genética. Ao manipular o tecido das vísceras para dar forma ao órgão propulsor e vital materializou a metáfora: Fez das tripas coração.

ANTOLOGIA CONTOS IMEDIATOS




Foi marcado o lançamento da antologia de ficção científica organizada por Roberto de Sousa Causo, chamada Contos Imediatos. Será em 28 de novembro de 2009, das 15h00 às 18h30, na Livraria Martins Fontes, na Av. Paulista, 509.

Os autores são: Luiz Brás, Ataíde Tartari, Sidemar V. de Castro, Ademir Pascale, Miguel Carqueija, Tatiana Alves, João Batista Melo, Chico Pascoal, André Carneiro, Jorge Luiz Calife, Mustafá Ali Kanso e Tibor Tibor Moricz.
P.S. É a minha estréia em livro.

28 setembro, 2009

501. speranza

Alimentava a esperança de que sua amada, que o havia deixado, voltasse para os seus braços. Aí aconteceu o terrível acidente em que perdeu os braços. Nem tudo estava perdido, disse. E ergueu a cabeça. Pelo menos ainda lhe restara aquela esperança para que desse de comer. As esperanças, como se sabe, não cantam como os pássaros nem são tão fiéis quanto os cães mas duram bem mais. E só depois que ele se foi é que ela, a esperança, finalmente morreu.

501. speranza

Alimentava a esperança de que sua amada, que o havia deixado por outro, voltasse para os seus braços. Aí aconteceu o terrível acidente em que perdeu os braços. Nem tudo estava perdido, disse. E ergueu a cabeça. Pelo menos ainda lhe restara aquela esperança para que desse de comer. As esperanças, como se sabe, não cantam como os pássaros nem são tão fiéis quanto os cães mas duram bem mais. E só depois que ele se foi é que ela, a esperança, finalmente morreu.

500. são francisco

na proa do velho gaiola abandonado a carranca desdentada se assusta com as peripécias do espírito do rio morto.

500. são francisco

na proa do velho gaiola abandonado a carranca desdentada se assusta com as peripécias do espírito do rio morto.

499. licantropo (hombrelobo juvenil)

Todas as noites antes de dormir, Jordi, o ambidestro, costumava trancar-se no banheiro da casa dos seus pais com sua coleção da playboy e praticar aquilo a que vulgarmente chamam de vício solitário. Um dia, ele, que era ainda um garoto imberbe, percebeu com assombro que pelos negros e grossos brotavam-lhe abundantemente das palmas de ambas as mãos. Sem saber bem ao certo o que fazer, foi ter com um amigo mais velho que lhe explicou que aquilo se dava quando alguém se excedia na prática do tal vício. e que ele devia maneirar.

foi com lágrimas nos olhos que Jordi voltou para casa e se desfez da fonte da sua inspiração. mas de nada adiantou; àquela altura o seu imaginário pornográfico estava solidamente consolidado e ele não conseguia mais se controlar.

Hoje, cinquentão e solteiro convicto, a imaginação já não tão fértil, Jordi ainda pratica esporadicamente o vício. Às vezes, quando lhe sobra algum ou ele ganha no jogo do bicho, vai às vias de fato: aborda e arrasta alguma dessas vagabundas do calçadão para um período de três horas no Lua Cheia. Naquele hoteleco cabeça-de-porco na Praça Carlos Gomes, segundo contam as tais meninas, na hora de gozar, ele costuma entrar em terrível e repulsiva convulsão e baba e uiva - mas paga direitinho.
Versão para o Espanhol:
Todas las noches antes de acostarse el ambidestro jordi costumbrava cerrar la puerta del cuarto de baño de la casa de sus padres y hojear su colección de playboy. A el como a cualquier adolescente le gustaba estimular los genitales y abandonarse al vicio solitario. No se demoró mucho para que él, aún un chico imberbe, descubrise con asombro unos pelos negros y gruesos a brotabarle en las palmas de las manos. sin saber exacto bien lo que hacer, lo contó fué tener con un amigo más viejo que le explicó que eso se daba por el exceso de práctica y que él debia disminuir el ritmo .

Sin otra salida, ojos llenos de lágrimas, Jordi se volvió hacia a la casa muy triste y si deshizo de la fuente de su inspiración. Todavia, eso de nada le servió; ya que su imaginación pornografica estaba muy bien definida y el no tuvo más como parar.

Hoy, cinquenton y soltero por opción, la imaginación ya no tan fértil, Jordi no obstante aun practica esporadicamente el vicio solitário.Sin embargo, cuando ahorra alguna plata o la gana en el juego del bicho se acerca y arrastra sin piedade a una de esas vagabundas del acero para un periodo en un hotelito de mala muerte en la plaza Carlos Gomes llamado Luna Llena;
Alli, según las chicas, en la hora del gozo él empeza terrible convulsión. De su boca mana espuma amarilla y aúlla terriblemente como se fuera un monstruo herido de muerte - todavia les paga bien.
*. publicado no site: http://www.contosgrotescos.com.br

10 setembro, 2009

498. chá de sumiço (a Belchior)

Sumiu. Ninguém deu por ele pois não fez falta. Aliás, há tempos não fazia falta. Que se recorde desde que era zagueiro do Terrão F.C. em Sobral na década de Setenta.

497. síndrome de tcheckov

Anton era um médico competente e um escritor extremamente criativo; mas nas cantadas – atentem - era simplesmente um fracasso. Quando a dama passou com o cachorrinho em frente à janela do seu consultório àquela tarde ele saiu-se com esta pérola:
"É muita areia para o meu caminhãozinho!"

496. contatos

Que não lhe viessem com estórias de contatos imediatos. Um homem de ciência precisa ter antes de tudo paciência e perseverança. Como podia ser imediatista se vinha tentando se comunicar com os venusianos há pelo menos quarenta anos?

08 setembro, 2009

495. engarrafamento

Não tem como escapar. Nem há atalhos que possam servir de rota de fuga que as veias e vísceras da cidade estão todas congestionadas. É uma loteria: a cola passa de mão em mão e eles se animam e vem e escolhem uma fêmea desprotegida no flanco exposto da manada. E atacam. Os olhos infantis de bandido vidrados, injetados, estouram com naturalidade o vidro com insufilme e coletam o que lhes parece valer alguma coisa: a bolsa de grife que é uma imitação perfeita da que vendem na Daslu; o celular no console que é verdadeiro; os seios macios, que tocam curiosos, e que são falsos.

494. e agora?

José riu por último. Quando a festa acabou e todos já se tinham ido. E não riu melhor pois ria de si, do seu próprio ridículo e assumia o fato de que era uma piada. Então chorou. E só então sentiu-se melhor.

493. tigresa

Saiu vestida para matar. Encontram-na morta. E despida.

02 setembro, 2009

492. sushi erótico

reencontrei-a anos depois - nua e crua - naquele restaurante japonês da moda.

491. hai kai n.32

Na transpanteira
Fartam-se as formigas
Com o Tamanduá-bandeira

490. hai kai n.31

Nuvem em forma de elefante
De tarde, com certeza
Tromba d’água.

489. hai kai n.30

Volto à primeira escola
O pátio antigo - parece
Encurtou

488. hai kai n.29

Granizo estala
no teto de zinco
Carnaval em Julho

487. hai kai n.28

Ausentes as nuvens
A imaginação da menina
Pousa numa pedra.

26 agosto, 2009

486. hai kai n.27

Perco os cabelos
Desemaranham-se
Meus pesadelos

485. hai kai n.26

Nos ilumina
Lanterna japonesa
Made in china

24 agosto, 2009

484. a proposta

Dorme e queima lata na própria obra. Faz economia. Cada centavo ganho cá lá no Norte vale o triplo. Domingo quase não sai. Não bebe, não fuma, apenas poupa, guarda. E guarda-se para Rosa que ficou lá em Novo Oriente, esperando-o para o fim do ano.

Do vigésimo andar obra tem vista privilegiada. Pode dizer que conhece São Paulo. De vista.

Agora os crentes deram de aparecer nos finais de semana. Sobem, distribuem revistas, versões de bolso do Novo Testamento, convites para o culto, oram, cantam cânticos.

O pastor é de uma cidade lá perto da sua. Fala empolgado, com desenvoltura, quase sem sotaque. Cita de cor os Evangelhos. Pede contribuição.

Ontem veio novamente. Tinha os olhos injetados e disse estar possuído pelo fogo do Espírito Santo. Tinha uma proposta. Ali mesmo no parapeito apontou para as centenas de minaretes de concreto erguidos por outros tantos conterrâneos que os precederam. “Assim como ao povo de Moisés coube erguer as pirâmides do Egito”, disse.

“Ajoelha-te e me presta adoração!”, disse o pastor. “E tudo isso será teu!”

Na sua simplicidade não pode entender que o homem recitava um versículo emprestado da Bíblia. Bíblia que jamais havia lido. Aliás, nunca havia sido capaz de juntar as letras, de aprender a ler.

Intuiu, pressentiu, porém, quão malévola era a proposta. Quando a esmola é demais, dizem lá na sua terra, até o santo desconfia. Não queria tanto. Queria apenas juntar um bom dinheiro e voltar para Rosa. Só isso.

“Meu mundo não é deste reino”, desculpou-se. E saiu. O outro quedou-se perplexo, boquiaberto, sem argumento.

Desceu. Lá embaixo sentiu-se pequeno, oprimido, um inseto. Na esquina salvou-o um bar aberto. Fazia frio. Entrou. E depois de cinco meses abstêmio, pediu uma pinga.

483. dos Insetos

Era uma vez uma borboleta chamada SunTzu que, em um café da moda, conheceu uma barata chamada Gregor Samsa. Entre um chá e um café expresso, entabularam uma animada conversa e descobriram interesses comuns: livros, vinhos, charutos, belas mulheres, música clássica... Mas como tudo é efêmero e superficial nessa vida de inseto, entre baforadas espessas o sonho logo se dissipou: Sun Tzu voltou a vender pastel na feira aos sábados; e Joseph K a cuidar da sua lojinha de miudezas no Bom Retiro.

12 agosto, 2009

482. cinismo

"Meu cliente não explora o trabalho infantil", explicou o advogado do usineiro: "São homens-gabirus. Não crescem mais que 1,60 m. Não viu no Fantástico?""

481. bilhar

Nódoas. Manchas esbranquiçadas a macular o verde do feltro. Porque, taco em riste, encaçapei-a ali mesmo, na mesa de bilhar.

480. siameses (homenagem a José Luis Peixoto)

Elias precisava apenas ficar só consigo mesmo, mas Moisés, seu irmão, não desgrudava dele.

479. Amores

Meu ex se foi carregando meu desprezo e o seu desleixo. Meu atual, arqueólogo (talvez por isso goste de mulheres mais velhas), mais organizado, tem outras manias. Outro dia fez uma descoberta surpreendente: uma cueca posta há séculos para secar atrás da minha geladeira. Dedica-se agora a estudar sua origem e procedência.

05 agosto, 2009

478. juramento

Em visita ao Cemitério de Arlington descobriu que tinha ali quinze homônimos seus. Jurou pela alma deles que ia desertar.

477. paz

Os soldados de ambos os lados do conflito interrompem excepcionalmente os combates àquela tarde para assistir pela TV à final do campeonato de futebol. O mundo comemora um momento de paz em meio à guerra encarniçada. Aos quarenta minutos do segundo tempo, porém, o jogo é cancelado por causa da violência incontrolável das torcidas organizadas.

476. milagro

06:30 min. Mens insana in Corpore Sano, invento de fazer cooper na Praça Barão de Japurá. Deus surpreende quem madruga e sou abençoado com um milagre: o mendigo cadeirante que habita o playground levanta-se e anda. Em direção ao bar.

475. minuto de silêncio

Antes que a bola rolasse, o árbitro bigodudo de olhos insanos determinou que se fizesse um minuto de silêncio pelo grande cartola que se intitulou um dia senhor de ambos os tempos regulamentares, intervalos e prorrogações. Como ninguém confirmou a notícia de que Deus estava realmente morto, corpulentos agentes do manicômio de Munique invadiram o campo e lhe puseram ao árbitro uma camisa de força.

474. luuanda (homenagem a José Luandino Vieira)

Dentro da cubata*, nos furos do zinco, coxo João Gonçalves espia lua que caminha no céu e ri. “Lua anda”, encanta-se o coxo. “Luanda". Sakua!** Aluado este monandengue!*** Via também lua andar quando pisou mina ali mesmo, no lixão, próximo ao musseque****. Bum! Lua ficou encarnada sangue dele.
cubata - barraco
sakua! - Eita!
monandengue - criança, moleque
musseque - favela

04 agosto, 2009

473. hai kai n.25

a algarávia cessa
os trovões de abril
respeito

472. hai kai n.24

léguas adiante
na encosta cíclope
chora um olho d'água

471. hai kai n.23

sem encontrar resistência
o sal da maresia
corrói a vontade dos canhões

470. hai kai n.22

o bambuzal vibra
ao sabor do vento
e desorienta os morcegos

469. hai kai n.21

à deriva
sonha com o deserto
a agua-viva

468. presença

Estava no Orkut, no Twitter, no Facebook, nos mais recônditos sítios do cyber-espaço, e fisicamente já não estava entre nós. Reduzido à mínima unidade virou um holograma.

467. janelas

Ao despertar abriu a janela que percebeu dava para outra janela que já estava aberta e que dava para uma terceira através da qual via mais uma, escancarada, onde outra se encaixava qual moldura de um quadro com uma janela em close, entreaberta, onde sua vista já então se perdia. Fechou os olhos, bafejou, abriu-os novamente e, como supunha, as vidraças daquelas janelas todas se tornaram baças. Só então ensaboou o rosto e começou a fazer a barba que lhe crescera durante a noite.

466. pacto

Conheceram-se em um lugar inusitado: um hemocentro onde foram se oferecer como doadores. Foi, como dizia o bardo porralouca, uma paixão cruel, desenfreada. Até cogitaram um pacto de sangue, mas acharam melhor deixar pra lá pois concordavam que em tempos de crise deve-se evitar toda espécie de desperdícios.

465. david

Da janela do hotel em Bangcoc o velho ator estranhou mesmo que o dia tivesse nascido cinza. E que as coisas todas do mundo com exceção das túnicas alaranjadas dos jovens monges que cruzavam a praça estivessem em mil tons diferentes de cinza. Seus olhos estavam cansados. Suas pálpebras pesavam como os sinos de um templo e no entanto tudo que ele via movia-se sem que lhes ouvisse o som. Considerou que também a ele lhe faltassem as palavras . Logo escureceu. Lanternas opacas pontilharam a noite. E quando o velho ator já não mais esperava, de uma viela estreita ou de dentro dele mesmo, do rio que se esgueirava qual serpente logo adiante ou do sorriso bonito das moças que distraiam os turistas, veio um acalanto antigo, morno, que não lhe era estranho:

“Descanse, gafanhoto! Descanse!”, ouviu, quando já se acreditava privado de qualquer sentido.

27 julho, 2009

464. agente laranja

As folhas caíram todas tristes. E não era sequer outono ainda no Vietnam.

463. o dom que deus lhe deu

O desenhista técnico pericial do Departamento de Investigações de Crimes contra a Família, Xavier M, era um apaixonado pela sua profissão; mas vez por outra via-se surpreendido com sua própria habilidade com o lápis e as possibilidades ainda não exploradas daquele dom que Deus lhe dera. Aquela manhã, antes de ser detido pela corregedoria, seguindo as descrições feitas pelas mulheres que tiveram coragem de fazer a denúncia, desenhou a mão livre o rosto do homem que as estuprara. Era um auto-retrato. O mais perfeito que jamais fizera.

462. diferencial

Era um pobre diabo. Para sobreviver postava-se imóvel na praça logo cedo vestido e maquiado de anjo, os cornos disfarçados sob uma peruca loura encaracolada. O rabo em seta, inquieto, às vezes lhe escapava sob a túnica e despertava a curiosidade dos passantes - era o seu diferencial com o crescente aumento da concorrência.

14 julho, 2009

461. indulto

Abriu a gaiola e disse: vai-te! O pássaro não foi. Tinha casa, comida, carinho. Então ele inventou o indulto de natal e o pássaro saiu. E nunca mais voltou.

460. a cortadeira de bolsas presa na 25 de março

A fábrica de bolsas em Franca fechou (eu era cortadeira e pespontadeira) por causa da concorrência dos chinas. Aí eu me mandei pra São Paulo. Tinha que me virar, né??

459. a fuga

Gabriel tinha o estranho hábito de comer pilhas - as alcalinas eram as suas favoritas pois eram as que davam maior barato. Um dia seu padrasto, Affonso Henriques, se encheu daquele seu comportamento bestial e o internou em uma clínica de recuperação no município de Franco da Rocha; de onde ele fugiu uma tarde, durante o horário de visita, levando apenas a roupa do corpo e uma bateria Heliar, meia-vida, pertencente à ambulância daquela conceituada instituição

10 julho, 2009

458. acordo de cavalheiros

No horário de visitas no hospital, em vez do filho e da esposa , quem veio foi o demônio. Trajava um jaleco branco e bem passado, a máscara cirúrgica ocultando a face. Ele todavia pode identificá-lo pelos olhos serenos e pela protuberância dos pequenos cornos sob a touca de proteção.

“Fiz o que pude para salvar teu corpo, juro!”, desculpou-se. E ele viu sinceridade naquelas palavras.
“Assine aqui. Por favor”, estendeu-lhe a prancheta e uma Montblanc.

Assim, conforme haviam combinado trinta anos antes em um cassino em Las Vegas, ele cedeu-lhe os direitos pela alma que já se lhe escapava.

457. um miniconto de ficção científica

De uma hora para outra deu para se expressar em uma língua morta e a escrever hieróglifos ininteligíveis. Um caso digno de estudo. A comunidade científica ao analisá-lo, por consenso, concluiu que ele simplesmente nascera séculos adiante do seu tempo. Os adeptos da doutrina espírita, por outro lado, insistiam em que se tratava de um raro caso de regressão irreversível. Ninguém atentou para o fato de o botão seletor daquela estranha máquina de lavar largada em um canto do porão de sua casa piscar intermitentemente a indicar os séculos a que se podia retroagir.

456. em dobro

Mirei-a nos olhos. Neles, refletida duplamente, vi a alça de mira da minha arma. Deus te dará em dobro, ela ainda disse.

07 julho, 2009

455. utilidade

Depois do AVC , para provocá-lo, questionavam-no se não se sentia homem pela metade. Dava o troco de imediato. Sua mão direita, crispada, com apenas o dedo médio em riste, tinha lá sua utilidade.

454. cala-te!

"Cala-te!", disse o Rei . Foi uma sentença. E o bufão tagarela daquele dia em diante teve de fazer rir com mímicas e gestos.

453. lenda urbana I

No teto do consultório podia-se ver uma réplica perfeita do firmamento como quando era visto pelos antigos navegantes.
“Para nossas crianças urbanas que não têm a oportunidade que tivemos de contemplar a olho nu o universo em toda a sua magnitude ”, explicava orgulhoso o velho pediatra.
Estranhamente, depois de cada consulta com ele, os pais começaram a descobrir nos dedos dos filhos pequenas protuberâncias endurecidas e esbranquiçadas e todos eles, sem exceção, tiveram que recorrer a um dermatologista.

452. o despertador

Quando acordou o despertador ainda estava ali. E apenas ele e mais nada naquele quarto de alvas paredes caiadas. Maldito objeto metálico cromado e inanimado travado em suas engrenagens - que era à corda, antigo, feito para interromper sono e sonhos. Sem o impulso essencial seus ponteiros sobrepostos marcavam a intemporalidade das coisas e dos seres. Quis apalpar os bolsos, procurar por um canivete ou chave ou trinco com que pudesse desmontá-lo, mas não percebeu que isso não era possível já que estava nu; e ao descobrir-se assim sentiu-se profundamente exposto e fragilizado como quando foi abandonado na roda dos enjeitados da Santa Casa da Misericórdia. Desesperou-se. Teve uma crise que alternava choro e riso que cessou quando sentiu náuseas e não verteu a última refeição. Dentro si, suspeitava, havia apenas pequenos troços sem consistência, que podiam ser ou não resquícios de uma tristeza mal-digerida . O despertador ainda estava ali, intacto, a ocupar o espaço que lhe cabia dentro daquele quarto sem saída (pensava em saída porque queria fugir dali o mais rápido que pudesse). Tinha pressa mas seus movimentos eram lentos como se movimentasse dentro de um aquário, como se fosse um peixe nu que sonhasse com a amplidão de um oceano. O segredo, a chave que lhe abririam portas imperceptíveis ao seu olho só podiam ser encontrados na combinação daqueles números romanos dispostos em círculo no mostrador. Era uma hipótese a considerar. Mas também não se podia descartar a possibilidade de que as respostas estivessem nele mesmo misturadas àqueles já citados pequenos troços amorfos que por dentro sentia.O despertador inutilizado talvez nem exista como objeto, pensou. Pode ser um símbolo, a representação terrena do deus Chronos, um signo, um significado do que não consigo compreender. Um tempo esgotado, diluído, reduzido ao pó terminal de que falam as escrituras. Num ímpeto ele atirou o despertador contra uma daquelas paredes brancas como túmulos e ao vê-lo não encontrar resistência nem força gravitacional que lhe abrandasse a trajetória e ricochetear e tomar a direção do teto, e depois descer ao piso, e traçar feixes retos ligando ângulos e superfícies como um cometa no vácuo das galáxias, tudo compreendeu. Aquele despertador era o seu coração.

22 junho, 2009

451. males que vem pro bem

o torcicolo, de incômodo, fez-se providencial.: impediu-o de presenciar a cena de ciúme que sua namorada protagonizou bem ao seu lado e que, fatalmente, o levaria a torcer o pescoço da sirigaita.

449. aconteceu

Acordou em um lugar que, por causa da cama redonda e o teto espelhado, logo associou a um motel. Ao seu lado, despida, dormia uma linda mulher de cabelos ruivos. Não lembrava de nada. Onde estivera na noite anterior, o que fizera, na companhia de quem estivera a beber... Não, aquilo nunca lhe acontecera antes...

Apressou-lhe uma urgente necessidade de fuga. Silenciosamente, na penumbra do quarto, vestiu-se, calçou o tênis e saiu tomando o cuidado de não bater a porta. Lá fora o sol ia alto. Quis ter consigo seus óculos escuros e uma aspirina.

Duas quadras adiante entrou em uma padaria e pediu uma média e pão com manteiga. Mordia já o segundo naco do pão quando percebeu que o sutiã que lhe apertava os seios sob a camiseta não era os seu.

448. parcerias

Era um tempo em que as fichas caíam. Bêbados, bárbaros e vândalos descontavam suas frustrações e neuroses contra os orelhões amarelos que disputavam as esquinas com as “meninas” na batalha diária para ganhar honestamente a vida. Havia também a questão da saúde pública que alertava sobre o perigo que representavam os elevados índices de coliformes fecais nos aparelhos azuis decorrentes da sua freqüente utilização por usuários não muito fiéis aos hábitos de higiene.

Aquele tempo passou, as coisas mudaram, umas para melhor outras para pior. Agora são os tempos dos cartões com créditos. Os velhos orelhões, duros na queda, ainda servem de sparring aos insanos como antes; mas o índices de coliformes que os infectavam migraram quase que totalmente para os aparelhos de telefonia móvel. Quanto à questão da concorrência com as “meninas’, na impossibilidade de derrotarem um ao outro, houve entre os orelhões e as putas um processo de incorporação, de fusão, de parceria, tipo ganha-ganha. Hoje estes são uma espécie de mídia alternativa e oferecem seu corpo, sua concha de fibra de vidro aos banners autocolantes de classificados de prestação de serviços daquelas. E convivem pacificamente no mesmo espaço marginal das esquinas.

29 maio, 2009

447. no albergue

A carne é fraca – disse Irmã Dirce. E ofereceu ao jovem mendigo uma terrina fumegante de sopa de legumes. Seu coração de religiosa era só piedade; seus olhos, porém, como dois infames Iscariotes gêmeos, teimavam em traí-la.

446. arqueologias

Junto à carcaça do minotauro um moderno aparelho GPS - com a bateria esgotada.

21 maio, 2009

445. a ceiba

Arqueólogos descobriram, sob uma antiga árvore de Ceiba na periferia de Tegucigalpa, o fóssil de um dinossauro de 150 milhões de anos. O lugar não ficou pela descoberta mais famoso do que já era; posto que era à sombra daquela Ceiba, dizem, que costumava fazer la siesta o famoso escritor hondurenho Augusto Monterroso.

444. o mestre dos bonecos

Manipulava as marionetes como ninguém – tinha sido instrutor do próprio Imperador.

443.um anjo

Sua vida andava apagada, seus dias eram foscos assim como seus olhos. Sentado naquela praça, desprovido de ânimo, mal via quem passava. Foi quando aquele anjo de cara suja e asas rotas com uma caixa de madeira às costas se aproximou e perguntou: vai um brilho aí, moço??

442. reaproximação

Ele entrou no Brega e, como tinha visto de outras vezes que ali estivera, lá estava ela, sozinha, sentada na mesma mesa. Fumava. Os pensamentos pareciam se enredarem e se elevarem pela espiral de fumaça. Chegara cedo. Antes de começar o movimento. Na radiola, Odair José interpretava com competência um clássico dos seu repertório. Aproximou-se. Postou-se bem à frente dela e levantou-lhe o queixo, já com algumas rugas disfarçadas pelo blush. Os olhos, aqueles olhos negros que uma vez o haviam enfeitiçado, permaneceram baixos, apáticos, opacos.

- Balbina...
- Shirley – respondeu ela, esquivando-se, evitando-o – Balbina morreu, já era!
- Mamãe também – deu-lhe a notícia esperando dela qualquer expressão ou gesto.
- Não já passava da hora?- riu com sarcasmo.
- Todo mundo tem sua hora, Bina.
- Shirley.
- Como quiser.

Pediu uma cerveja e dois copos, puxou uma cadeira.

- Quero te pedir que voltes para casa.
- Quando tivestes que escolher, foi a ela que escolhestes.
- Minha mãe tinha grande influência sobre mim, tu bem sabes. Agora... Agora ela é morta. Vamos enterrar junto com ela o passado.
- Já está enterrado. E tu.. tu fazes parte dele.
- Podemos tentar... Quem sabe... Você não acha?

Os primeiros clientes começaram a chegar. Eram insetos atraídos pelas lâmpadas rubras pendentes do teto e pelo cheiro das fêmeas. Odair José já passeava por outra faixa do LP. Ele teve que tomar a cerveja sozinho.

20 maio, 2009

441. o sumotori

Kumori, o okinawano, sentiu-se incrivelmente leve nos seus cento e cinqüenta quilos aquela manhã. E pensou que estava a sonhar ao se dar conta que flutuava suave por sobre os telhados da aldeia como se fosse uma nuvem. Dali pode, por exemplo, contemplar a florada das cerejeiras que se estendia exuberante até as encostas da Montanha da Tartaruga. Intrigou-lhe a total ausência de brisa que inquietava os bambuzais e a face polida e tranqüila do lago das carpas da praça principal. Os tambores rituais do templo xintoísta estavam mudos, sisudos. O universo, com suas cores desbotadas, apresentava-se definitivamente estático. No pátio do antigo castelo, em volta de um círculo, viu, não sem desconfiança, uma multidão silenciosa e reverente. Dentro do círculo, agachado sobre os calcanhares, achava-se um jovem sumotori que ele reconheceu como sendo Shida Mamoro, de Hokkaido; este, diante de um pálido desafiante prostrado e sem os sinais vitais, parecia chorar. Só então Kumori percebeu que ganhava altura e que tudo o mais parecia tornar-se insignificante.

440. vocação

Voar está no seu sangue – começou como avião no morro; hoje pilota um Cesna entre Pedro Juan Caballero e os canaviais de Ribeirão Preto.

439. terapias I

Cromoterapia?? Não, não funciona comigo - disse o daltônico.

15 maio, 2009

438. a novidade

Aquele dia Marlo acordou cedo sem reclamar, comeu frutas e cereais no café da manhã e salada de almeirão no almoço, chegou pontualmente à escola, assistiu atentamente às aulas, voltou direto para casa, fez todas as atividades escolares, tomou banho, escovou os dentes e dormiu cedo – por tudo isso acumulou-se uma quantidade substancial de bônus para o dia seguinte, quando ele seria submetido aos obstáculos do nível 2. Diante do monitor, aferrada ao joystick, sua mãe era de uma felicidade só. E a pensar que a princípio ela chegara a duvidar das potencialidades daquele game pedagógico!!

437. mino, o pequenino

“Em nome de que potentado vens a mim, ó homem de diminuta compleição? – inquiriu, soberbo e soberano, do alto do magnífico corcel azeviche que o tornava ainda mais imponente, Alexandre, o Grande, ao anão que lhe trouxeram suspenso pelos bracinhos curtos os soldados-batedores.

“De nenhum daqueles pobres governantes que ao teu poder belicoso se submetem ou hão de se submeter, ó supremo conquistador. Venho antes em meu próprio nome: sou Mino, o pequenino, filho bastardo de Horácolo”

Houve, reza a antiga lenda, um silêncio ensurdecedor sem dimensões ante tamanha ousadia que nem mesmo os amaldiçoados insetos que infestavam àquelas remotas paragens da Ásia Menor ousavam maculá-lo com seu irritante zumbido.

“Vosso nome e o do vosso pai nada são e nada me dizem. Mas é demasiado grande a vossa afronta comparada ao vosso tamanho”, advertiu Alexandre, não escondendo porém a admiração pela coragem daquele homenzinho corrugado e corcunda que parecia ter sido parido do ventre das montanhas vermelhas em forma de corcova que os exércitos da Macedônia então cruzavam.

O pequenino não desviou nem baixou os olhos miúdos; assim como não cogitou voltar atrás no que dissera.

“O que vem de baixo jamais me atinge!”, advertiu soberbo o Semideus. “Mas enfim, dizei-me o que queres, que sobre tudo e todos, nos céus, na terra e no mar, legislo e reino absoluto”

“Não quero nada senão o direito de olhar nossos vossos olhos, ó Rei dos reis!”

Alexandre relaxou a postura e riu embevecido: “Um admirador dos meus feitos, é o que tu és?”

“Sim, majestade. Pereceria frustrado da mesma forma se não o visse antes que morresse”

“E quem disse que pretendo matá-lo, ó miúdo?”, divertiu-se o Macedônio. E com ele riram seus generais e ordenanças.

“Desculpe-me, senhor! Quis dizer, antes de vossa morte”

Uma nuvem negra eclipsou o sol do meio-dia. Murmúrios de incredulidade em uníssono reverberaram nas encostas sem vegetação. Alexandre, repentina e definitivamente, perdeu a divina paciência, encolerizou-se, e ordenou que executassem o anão ali mesmo;o que não representou tarefa difícil para o seu arqueiro preferido.

Dias depois, em sonho, encontram-se novamente, vítima e algoz. Uma espécie de deja vu.

“Que queres?”, pergunta Alexandre com a mesma autoridade de sempre.

“De vós nada, senão esperar”

“Esperar o que, ó ser ínfimo?”

“Esperar por vós, ó nobre guerreiro, que não deveis demorar!”

14 maio, 2009

436. o mártir

Embora eu seja magro, delgado mais para o raquítico, foi-me deveras penoso compartilhar o assento do ônibus com aquela senhora de massa corporal avantajada. Injusto compartilhamento: três quartos para ela, um para mim. Como o percurso a ser percorrido levava algumas horas, ao longo delas, por tal penitência não declarada pelo pároco da nossa freguesia, desconfio que tenha zerado finalmente a minha cota de culpas e pecados veniais. Trocamos poucas palavras. Explico: a minha companheira de viagem não era lá de conversar muito e percebi que ocupava melhor suas mãos e boca com outra atividade mais dinâmica: a da ingestão. Seus maxilares davam duro sob as papadas e pareceram-me rodas dentadas, engrenagens azeitadas de uma verdadeira máquina de triturar.

Ao desembarcarmos na estação da Praça Garibaldi, senti-me como um mártir cujo corpo tivesse sido submetido a, digamos, um torturante espremedor de laranjas ( pergunto-me como foi que os inquisidores não tiveram esta brilhante e sádica idéia) e desabafei com um suspiro de profundo alívio:

“Descei sobre nós, ó Espírito Santo!”

Algumas velhinhas que também desciam do nosso ônibus, testemunhas oculares do meu triste martírio, se persignaram ou beijaram com fervor seus escapulários quando, não por um alto desígnio do divino, mas por causa das tantas migalhas impregnadas no meu terno, cabelos e bigode, uma revoada de pombos desceu sobre mim.

435. edberto, o homem-estátua

Edberto era um rapaz honesto e de boa índole que, vítima do desemprego, decidiu virar homem-estátua. Todo santo dia, fizesse sol ou chuva, lá estava o Edberto, na Praça da Sé, batalhando imóvel por uns trocados. No dia sete de agosto de 1999, logo pela manhã, os funcionários da Subprefeitura do Centro vieram com um caminhão-baú e removeram o Edberto para o largo da Batata; e ele, por mais que tentasse opor resistência àquela arbitrariedade, não conseguiu articular palavra alguma nem se mexer. Em Pinheiros, firmado em um canteiro mal-cuidado e já resignado, Edberto-estátua adormeceu e acordou, sem saber como, novamente na praça da Sé, entre mendigos e pombos. Nova remoção foi providenciada e, dias depois, lá estava o Edberto-estátua outra vez no centro da cidade. O fato inusitado e inexplicável gerou polêmica e ganhou imediatamente as manchetes dos matutinos sensacionalista. Porém, de tão explorado que foi, perdeu a graça e acabou se tornando desinteressante. Menos, é claro, para os devotos de São Edberto que todo dia sete de Agosto levam a sua imagem em procissão da Praça da Sé ao Largo da Batata, de onde, certamente, como sempre tem sucedido, ele há de por seus próprios meios retornar. Se um dia isso não acontecer, dizem, o rio Pinheiros vai reverter o seu curso e pode ser até que garoe em São Paulo.

434. um milagre

- Diz-me com quem andas... disse o mestre – que te direi quem és.
- Então - contestou o jovem que lhe ouvia atento - não saberás jamais quem sou, Rabi!
- E por que pensas assim, ó filho?
- Como direi com quem ando se sequer "ando"?
- Sábia dedução – disse o Mestre a sorrir e dando plena razão àquele pobre rapaz que desde a infância vivia entrevado. E assim, entendendo que a situação exigia um milagre, ordenou com um gesto:
- Levanta-te e anda, filho! Para que eu possa te conhecer!

12 maio, 2009

433. versão contestável

Vim, vi e venci – apregoou Julio descaradamente. Pois soube-se depois que quem na verdade havia vindo era César seu irmão gêmeo; E visto não havia pois que ambos os irmãos pelo o que se sabe eram cegos de nascença – já o fato de cantar vitória, trata-se apenas e tão somente da sua versão. Contestável até que possa ouvir o outro lado.
En fila índia los soldados pakistaníes (em fila indiana os soldados paquistaneses.

(Enviado ao concurso "Un cuento en seis palabras" - Navona Editora - http://www.navonaed.com )

432. seriado I

La novicia voladora no tenía licencia ( a noviça voadora não tinha brevê )

(Enviado ao concurso "Un cuento en seis palabras" - Navona Editora - http://www.navonaed.com )

431. o sonho de monterosso

Perdió el sueño y contó dinosaurios.

(Enviado ao concurso "Un cuento en seis palabras" - Navona Editora - http://www.navonaed.com )

07 maio, 2009

430. esopo II

Contrabandeava animais silvestres, dizem, e ganhava uma fábula.

429. 19 de abril

“Se eu te devorasse, irmão Xavante, apenas absorveria tua alma atormentada e somaria o teu medo ao meu medo, o teu desânimo ao meu próprio desânimo”, observou velho o pajé Severino Abmarãã, dos Krenak, lembrando do tempo em que viviam em guerra entre si e devoravam seus prisioneiros para nutrir-se de seu espírito guerreiro e de sua coragem.
Ao seu lado o Cacique Ernesto Kuhodu apenas assentiu com a cabeça adornada com um triste cocar de penas de pombo que improvisara ali mesmo na Esplanada dos Ministérios onde estavam acampados há mais de um mês. E dividiram a “quentinha” nem tão quente assim doada pelas Missionárias Irmãs da Caridade.

06 maio, 2009

428. com uma condição

Não gostava que me chamasse Jonas. Insistiu para que mudasse para Elias, Raul ou Eduardo. Disse que concordava desde que ela fizesse a sempre adiada operação de redução do estômago.

05 maio, 2009

427. conversão

Eu era ladrão de cabelos (melenas dão uma boa grana no mercado negro de apliques). Há melhor lugar para perscrutar possíveis vítimas que aqui na Igreja Evangélica Filhos de Betsebá? Eu vinha sempre e acabei me convertendo.

426. teseu, o besouro

Entrou no seu labirinto e, antes de matá-lo, o fez enlouquecer.
Entró al laberinto y lo mató.
(Enviado ao concurso "Un cuento en seis palabras" - Navona Editora - http://www.navonaed.com )

425. fábula pandêmica

O lobo, que tinha cursado arquitetura até o terceiro ano, avaliou com conhecimento a estrutura da casa : mal planejada, material de terceira, péssimo acabamento, serviço de porco. Se eu bater palmas é bem capaz de ir abaixo. Mas não ia abrir mão do assédio, do terror , que era a melhor parte, a que mais lhe dava prazer. E deu o ultimato:

- Ou vocês saem daí de dentro, ou uso do meu super-sopro e derrubo esse cortiço!

O porco mais velho, prático, entreabriu a porta, deixou à mostra apenas o focinho de tomada e respondeu ao desafio:

- Combinado! Você sopra e eu espirro em você!

424. avis rara

Adorava garimpar raridades nos sebos do centro. Uma vez, em um deles, encontrou uma virgem de vinte e quatro anos, dedos hábeis, leitora compulsiva de Anaïs Nin.

423. o cara

Era pra eu ser um predestinado, confessou visivelmente emocionado. Quando nasci o "homem lá de cima" me apontou e disse: esse é o cara! Só que cá embaixo os putos entenderam tudo errado e caíram de pau encima de mim. Malgrado o mal-entendido, não perdôo a divina delação.

422. golden gate

Escalou o gradil da ponte escarlate e mirou ao longe o contorno das montanhas azul-escuro. Talvez esperasse um sinal. Algo que o fizesse desistir ou dar o passo determinante. Por um momento esqueceu que tinha fobia de altura e riu nervosamente com a intenção de aliviar a tensão que lhe enrijecia a nuca. Respirou fundo, relaxou, baixou um pouco a vista e divisou lá longe, no centro da baía, o antigo presídio agora transformado em atração turística. Poucos foramos que conseguiram fugir daquele inferno, pensou. E desceu do gradil tremendo, as pernas bambas, quase a morrer de vergonha. Olhou para os lados, ajustou o colarinho da jaqueta de couro, enfiou as mãos nos bolsos e retornou ao mirante onde participantes de uma excursão da terceira-idade tiravam fotografias, tentando capturar instantâneos de um tempo que lhes escapava.

421. noite feliz

Elas sobem pelos meus pés, escalam minhas costas, passeiam à vontade. Não me importunam a mim nem eu a elas. Democrata convicto sei reconhecer o seu direito de ir e vir. Algumas vem, se detém na minha barba e eu suponho que seja por causa das migalhas que nela se acumulam. Observo-as. Imagino que suas antenas captem good vibes pois é Natal; e isso só pode significar uma coisa: que os sobejos nos serão fartos.

30 abril, 2009

420. lux

Nove meses depois do Blecaute ela deu à luz.

419. o que poderia ter sido

Aquela última noite em Angicos, Maria Bonita sonhou que vivia em Jeremoabo com seu primeiro marido, Zé de Neném, homem bom, honesto mas estéril e sem pulso. Tinham ambos por volta de setenta anos de idade e número idêntico de descendentes (os sonhos são tão confusos). Estavam ambos sentados na varanda da fazenda. Ela, trabalhando os bilros num labirinto de renda; ele picando fumo, enrolando um cigarro de palha. Papeavam:

- Tivesses eu perdido a cabeça indo com “aquele homem”, meu velho, nada disso estaria acontecendo agora.

- De cabeça não me fale que chapéu não faço, Maria Déia. Sou sapateiro e vou morrer sapateiro.

29 abril, 2009

418. romantismo

Tem mau hálito, maus hábitos, um Passat velho caindo aos pedaços e me chama de Creuza (meu nome é Cleuza). Mas não abro mão dele não, minha filha, que homem homem mesmo é produto raro de se achar hoje em dia. Nunca me trouxe flores, é bem verdade. Mas fazia questão de abrir (e fechar) a porta do carro para mim, como todo cavalheiro que se preze. As minhas amigas morriam de inveja. Achavam o máximo. Isso até o enxerido do meu primo, que é mecânico quebra-galho, consertar, a troco de cerveja, a bendita porta. Filho da mãe! Assim, não há romantismo que resista, concorda??

28 abril, 2009

417. prova

O golpista, que juntamente com um cúmplice infiltrado na Previdência Social sacava provimentos de velhinhos aposentados já falecidos, bem que tentou negar seu crime; mas ao revistarmos sua casa encontramos entre os seus pertences um exemplar de "Almas Mortas" de Nicolai Gogol.

416. breve ensaio sobre a cegueira

Ela passava a sua frente pontualmente às sete e trinta. Pelo perfume ele podia traçar perfeitamente o seu perfil: uma Deusa. E então fantasiava: sonhava com o dia em que, ao tentar cruzar a faixa, ela viesse e o conduzisse pelo braço até o outro lado da avenida. Ou bem mais longe, se fosse o caso, que com ela iria até para o inferno.

Ontem pela manhã, cheio de coragem, teceu-lhe um elogio. Ela sorriu. Sentiu-o no vento pela mudança brusca da sua respiração.

Hoje foi mais ousado, senão atrevido: fez-lhe uma proposta no mínimo indecorosa.

“Vê-se te enxerga!”, ela respondeu no revide. Mais bela ainda quando brava.

415. bastardias

"Eu era uma cunhã infeliz e mal amada ", confessou-me ela em guarani, como costumam fazer os paraguaios quando querem evitar os bisbilhoteiros - naquele caso os repórteres dos mais diferentes órgãos de imprensa que sufocavam-nos de microfone em riste.
"Meu marido me batia freqüentemente, me humilhava diante dos outros, me mandava tomar naquele lugar... um dia mandou que eu me queixasse ao bispo. Foi a melhor sugestão que ouvi daquele canalha em cinco anos juntos. O bispo é um homem afável, carinhoso, e soube me confortar"

414. a invasão

Os aguerridos militantes do Movimento dos Sem Terra, foices em punho, avançaram vorazes sobre o latifúndio improdutivo, fincaram estacas, armaram tendas de plástico negro, tomaram posse, organizaram a resistência. Esperaram. Passou-se uma semana, quinze dias, um mês e os seguranças armados do fazendeiro, estranhamente, não apareceram. Assim como a polícia, que deveria cumprir a reintegração de posse emitida por um juiz notadamente parcial. Como aquela calmaria toda os inquietasse eles acharam prudente montar um bloqueio na confluência da estrada vicinal com a principal para que ninguém viesse a cruzar aquelas terras. Meses se passaram sem que vivalma tentasse passar por ali.

Ao fim do oitavo mês, por ordens da liderança nacional do movimento ou por iniciativa própria, eles desarmaram as tendas, juntaram seus pertences e marcharam para o norte. No céu límpido daquela quinta-feira, os pássaros, descaradamente subservientes aos valores da burguesia emergente, faziam justamente o contrário.

413. olhos

Quando abriu os olhos percebeu que dentro deles não haviam esmeraldas. Nem mesmo turmalinas sem valor. Decepcionado guardou a faca e atirou-os, vazados, aos peixes. Aqueles, porém, simplesmente os ignoraram.

17 abril, 2009

412. jam session


411. descolados


410. ceticismo

Ansiava por uma experiência mística que quebrasse de vez as cadeias do seu ceticismo. Então, mochila às costas e cajado, como tantos outros, tomou o caminho de Santiago. À altura de Carrión de los Condes foi atropelado por um caminhão trucado em alta velocidade e sobreviveu. Milagre! testemunharam alguns peregrinos que faziam a mesma rota e que adotaram o acontecimento como sua própria experiência. Ainda assim ele não se convenceu: queria porque queria uma experiência mística que quebrasse o seu ceticismo, não suas pernas.

409. de cheiros e contactos

O Comandante João era um governante que cagava e andava para os índices de popularidade. Dizia com todas as letras que preferia o cheiro dos cavalos ao contacto com o povo. Ao deixar a vida pública, aposentado, João deu para passar as tardes no Jóquei Clube jogando damas e aspirando deliciado aquela acre atmosfera eqüina.

“Antes montar um puro-sangue que uma mulher do povo”, costumava afirmar ao seu mais fiel parceiro de jogo, Coronel Malaquias, antigo chefe do Serviço de Informações que não perdia a mania de espionar os outros e que por isso mesmo flagrou a ele, João, um dia, detrás de uma das baias, cavalgando a fogosa copeira do clube.

“Entendo, disse Malaquias rindo, que mudastes de idéia a respeito dos cheiros e contactos, meu comandante!!”

“Ando lá meio constipado, sabe? – respondeu João sem interromper o coito - Ainda bem que não perdi o apetite!”

408. a diferença

O melhor de Saigon, baby, eram as mulheres com suas doenças venéreas. Quentes pra caralho. Napalm puro. E a farta ração diária de marijuana, é claro. O inimigo? Ah, o inimigo estava dentro da gente e a gente dentro de um filme do Oliver Stone. Penso se não teria sido melhor se tivéssemos ido para Woodstock. Mulheres, surubas, ácido, marijuana a vontade... A diferença? uma trilha sonora bem mais apetecível.

407. França, 1917

Louis Antoine Chamoiseau, auxiliar de coveiro da pequena aldeia de Saint Gaultier, convocado para o front acabou levado à Corte Marcial por recusar-se a cavar uma trincheira. Ele não disse o porque da recusa porque achava que nenhum dos seus oficiais superiores ia dar ouvidos às suspeições de um reles soldado raso, e para não atemorizar seus companheiros de armas - a verdade é que, por experiência, ele adivinhara naquela tarefa não o improviso de um sítio de abrigo contra a artilharia inimiga, mas uma enorme sepultura coletiva.

406. london subway

A policia estava lá, no lugar correto e no momento certo (pontualidade britânica). Pegou o cara errado.

14 abril, 2009

405. devoto

Outra vez a seca. Cíclica. No peito do sertanejo acossado pelo flagelo sentimentos antagônicos de resignação e revolta.

A velha da foice ronda por ali impaciente, a mão descarnada no punho da redinha de coroá onde o menino, coitadinho, olhos tão fundos, quase anjo. Pusessem-lhes duas asinhas de avoante e voaria no mesmo instante para junto de Nosso Senhor. Daquela noite não haverá de passar. Carece pois que o batizem logo para que não morra pagão. Um nome têm: Manoel. Água, não. Nem pra remédio, quanto mais pra batismo. Talvez a umas dez léguas, no Poço do Peba, mas até lá... Há quem sugira um punhado de areia fina do leito seco do Riacho do Mato . Ou cuspo grosso, escuro, da boca mascadora de fumo do avô, também Manoel.João, o pai, impotente vai até o alpendre, fuma, pensa que pensa, repensa. De repente lembra-se de algo. Sem nada dizer desaparece capoeira adentro. Some.

Endoideceu de tristeza, dizem lá de dentro, sem surpresa. Loucura é só uma das conseqüências da fome.Mas João volta logo. Consigo traz uma moringa de barro.Água? Mel de Jandaíra? Perguntam em uníssono os ávidos familiares, quase a saltarem-lhe encima.É cachaça, contraria-os. Do engenho da Calabaça. Enterrei ali junto do mourão da cerca pra pegar mais gosto. Faz tanto tempo que tinha inté me esquecido...O pequeno Manoel é então batizado com aguardente. Batiza-o o avô. E o menino quase-anjo frustra o desengano sobrevivendo àquela e tantas outras estiagens.Tá aí a prova, aponta Zefa, sua esposa, cinqüenta anos depois. Cuia ruim, meu filho, não quebra não. Por isso devoto da cachaça até hoje.

09 abril, 2009

404. o buraco

O BURACO


Ocorreu mais ou menos como vou lhes descrever: mal o ônibus 779, Vila Buarque – Estação da Luz, adentrou o túnel mal iluminado na região central, apelidado pelos paulistanos mais antigos de buraco do Adhemar, o rapaz de touca azul-escura e moletom, sentado logo atrás do motorista, sacou de um revólver niquelado...

Este conto meu saiu pelo site português Letrário. Para lê-lo por inteiro acessem o link.http://www.letrario.pt/1_pt/900/9002.htm

08 abril, 2009

403. naufrago (cartum)




402. implicância

Ele se foi já faz um bom tempo, mas nada comparado ao tempo que se aturaram e que contaram em bodas. O cheiro ainda espalhado por aí, impregnado em tudo. Outro dia ela achou detrás da cômoda uma bituca de cigarro da marca que o matou. Noutro, evidências de que ele a traía com uma diarista que também já se tinha ido - desvio que para ela não representou nenhuma novidade.

Esperava que sem ele os sinais logo se apagassem. Pois se assim fosse não correria mais o risco de enlouquecer. Agora já não tem tanta certeza: Toca a vida cuidando das plantas, do gato, da vida alheia. E a irritar-se quando se depara com o vaso sanitário com a tampa levantada.

401. papo cabeça

Cabeça era o papo, modernosos os óculos intelectualóides e o corte de cabelo.

- Sexo é o duto, ralo para onde convergem umidades. Decifra-me!

Assunto para tese e meia.

A transa rolou ao som minimalista eletrônico de um DJ de nome infantil. BB Kids ou o equivalente. No clímax gemia citações dos clássicos – em latim - e poemas sujos dos beatniks mortos.

No carpete as contas de um colar barato de pedras de lápis-lazúli adquirido por uma merreca em uma mercado de pulgas na Vila Madalena. Roupas de brechó. E preservativos intactos. E outra vez o papo cabeça.

400. ofídia

Cleópatra, Cléo na intimidade, era a rainha do agito. Balada, para ela, não tinha dia nem hora. Uma noite excedeu-se nos estimulantes e perdeu o rumo. Encontraram-na no dia seguinte, morta, dentro da cova das cascavéis no Instituto Butantã.

06 abril, 2009

399. (poema concreto)

cavo cavo cavo cavo cavo cavo cavo
cavo cavo cavo cavo cavo cavo
cavo cavo cavo cavo cavo
cavo cavo cavo cavo
cavo cavo cavo
cavo cavo
cova

398. hai kai n.20

cogumelo pálido
no esterco úmido. lembro:
esqueci meu guarda-chuva.

397. hai kai n.19

dentro da lanterna
tatuagem viva
mariposa azul.

396. hai kai n.18

brisa outonal
fantasma trêmulo
suspenso no varal

395. hai kai n.17

gota de orvalho
nas orelha-de-pau
um mimo de brinco.

394. relógio

O estado do corpo carbonizado dentro do automóvel era lastimável: dentes arreganhados, olhos cozidos... aspecto de múmia egípcia desenfaixada. Imaginei: vai ser barra para o médico-legista proceder a identificação. Por experiência (dez anos lotado na delegacia de crimes), de antemão descartei totalmente a possibilidade de assalto – o relógio da vítima, um autêntico rolex, intacto e derretido, os ponteiros indicando a hora derradeira do infeliz. A imagem lembrou-me uma pintura do Dali. Fiquei sensibilizado. Porra, eu devia ter sido artista.

393. disponível

A mão, pedi-a, quando tive certeza que encontrara a jóia certa com que podia orná-la. Então a mão se interpôs entre mim e o corpo que era a sua extensão: para trás que daqui não passas! Não insisti. Retrocedi. Saindo do seu raio de ação penhorei a jóia com um turco velho no centro e apregoei em sites de relacionamento a minha disponibilidade.

392. enlouquecendo

Espáduas nuas. Era o que mais o enlouquecia. Até no último instante . Até ela dar-lhe as costas e ir-se sem olhar para trás. Até distanciar-se, sumir, deixá-lo na mão.

391. esforço

Pés. Fazia-os toda semana só para agradá-lo. Satisfazer seu fetiche. Amputava-se, esta que é a verdade. Que por causa da outra, cheia de dedos, ele trocou os pés pelas mãos.

18 março, 2009

388. hai kai n.16

Em boca fechada, não entra mosquito
Já em água parada
Rola o maior agito

387. hai kai n.15

Olhos úmidos
Rasos
Rio assoreado

386. hai kai n.14

Escura é a lágrima
Que escorre na face
do menino carvoeiro

385. hai kai n.13

Madrugada adentro
Um cão ladra
E afugenta meu sono

384. lady alaíde

Lady Alaíde ganhou de presente
Um alaúde
Coitadinha se ilude:
Um dia ainda vou saber tocar este alaúde.

Lady Alaíde pediu a Mestre Ataíde que a ajude
A ensine a tocar o alaúde
Mas Mestre Ataíde
Anda mal de saúde
(Dizem a meia-boca que até já comprou um ataúde)

Mas Lady Alaíde
Não duvide
É moça de atitude
Dispõe-se a gastar sua juventude
Aprendendo a tocar o bendito alaúde.

Aconselhou-a Mestre Ataíde:
Alaíde, Alaíde
Não se fie em quem te aplaude
Cuide-se, não se descuide
Estude, estude e estude.
Se não der certo, paciência:
Case-se com o Alcaide.

383. pernas

Ela cruzou meu caminho . Cruzou as pernas. Persignei-me e ela perseguiu-me sonho afora, noite adentro. Pernas, como te quero !

383. vinganças que não vingaram II

Serviu ao marido uma terrina fumegante: o cheiro do tempero, das especiarias – e do veneno – escancararam-lhe o apetite. A fome capitulando ante a ameaça. E o canalha sobreviveu. Só depois chegou à conclusão de que de fato pratos quentes não combinam com vingança.

382. vinganças que não vingaram I

Arquitetou vingança sórdida contra seu pior desafeto: o prédio haveria de desabar e soterrá-lo sob toneladas e toneladas de concreto. A vingança, porém, não se concretizou. O prédio resiste. Seu currículo de Arquiteto continua sem irrepreensível.

381. o ex-mágico

Deu-se em Palermo faz algumas semanas: após confessar seus mais recentes crimes, o Capo local quis ter certeza de que o padre não iria abrir o bico e ordenou que ali mesmo, em frente alguns dos seus paroquianos que aguardavam a hora da missa, um dos seus capangas metralhassem impiedosamente o confessionário; depois saiu como se nada tivesse acontecido.

E, para estupefação dos que ali se encontravam, de fato nada aconteceu; pois logo em seguida o velho pároco abriu a portinhola e saiu ileso e impecável em sua batina preta.

Atirava-se já aos seus pés a beata mais antiga e devota gritando Milagre!,quando o padre a impediu:

“Milagre coisa nenhuma, dona Piovanna”, ralhou. “Milagre é coisa de santo e eu não passo de um pobre pecador.”

Só então ela lembrou-se de que quando eram jovens, o padre, oriundo de uma tradicional família local, tinha se encantado com um circo mambembe que passava pela cidade e acabara fugindo com ele a despeito da vontade paterna para que fosse estudar leis em Roma.

“Não esqueçam” alertou sem nenhuma modéstia porém no mesmo tom solene com que costumava fazer seus sermões: “Que já fui o maior mágico que esta península já teve. Em nome do Pai, do filho e do Espírito Santo, Amém!”

A liturgia prosseguiu normalmente, sem sobressaltos.

12 março, 2009

380. auto da covardia

Estava só na plataforma. Naturalmente esperava. O intervalo entre um trem que viria e outro que passara um pouco antes que ali chegasse parecia uma eternidade. Pensou que podia se matar sem que ninguém o impedisse. Pensou também que podia continuar indo e vindo de casa para o trabalho, do trabalho para casa, percorrendo dia após dia aquela mesma linha, igual a um dejeto fecal que percorresse os intestinos da cidade.

Quando o trem apontou ele deu um passo atrás. Nada que cause estranheza pois nunca fora voluntário para nada. Sabia muito bem e como poucos – uma qualidade? - o valor da covardia.

Como se ele não existisse, ou fosse invisível, o trem passou batido, direto – ou foi sacanagem de Caronte, o condutor??

Ele podia jurar que o vira rindo, sarcástico.

11 março, 2009

379. golem

Depois de um curso básico de oleiro, o rabino Saul Getz Mendes da Fonseca, de Lisboa, moldou finalmente o seu primeiro Golem, ser animado de matéria inanimada. E seguindo o passo a passo da Cabala, escreveu com caprichosa caligrafia em hebraico a palavra mágica Emet em sua testa para poder ativá-lo.

“Ah!”, bateu em sua própria testa “Quase que ia me esquecendo! Preciso inflar em suas narinas o hálito da vida”

Fê-lo e o Golem abriu seus tristes olhos de argila.

“Parla! Parla!”, ordenou o rabino, exultante.

E o Golem falou:

“Andas a comer muita cebola, heim Rébi?”

378. generosidade

Os seios? Sonhei com eles, ansiei por eles, pedi-os. E não me foi dado sequer tocá-los. Foram-me negados ambos. O decote – odiei-o – em nada generoso comigo.

377. brinquedos

Ia pegar mal dar uma geral naquele velhinho aparentemente inofensivo vestido de Papai Noel, mas ele o fez. Tinha que ser profissional, fazer valer a autoridade que lhe fora conferida desde que dela não abusasse. E protagonizou uma cena inusitada entre tantas outras em Sampa àquele Natal. Uma multidão juntou-se. Começavam os protestos quando ele espalhou no piso do shopping o conteúdo do saco que o velho carregava às costas: eram apenas brinquedos. Sim, muitos brinquedos. Ninguém podia duvidar que de fato fossem brinquedos. Para pervertidos, é verdade, mas... brinquedos . Consolos fálicos de todos os tamanhos e espessuras e texturas para solitários. Vibradores de última geração. Cremes para penetração made in china. E cópias pirateadas de filmes pornográficos. Utilitários para todos as taras.

376. o último espetáculo

O Circo Bem-Hur fora à falência. Era o último espetáculo. Depois, como diz o jargão, era cada um por si e Deus por todos. Entrada livre e ninguém compareceu. Onde o respeitável público?? – o coraçãozinho das crianças, sabia-se, tinham sido há tempos arrebatados pelas mídias eletrônicas e games. Tristeza às pencas, muita tristeza.

O domador de feras, homem outrora enérgico, não conseguia sequer domar seu desanimo monstro; o mágico já não se iludia: só definhava, sumia aos poucos; a trapezista acometida de súbita labirintite mal se mantinha de pé para o derradeiro número;e o palhaço, num canto, chorava inconsolável e borrava a maquilagem. Nesse clima de velório só o anão foi capaz de um ato de grandeza: foi lá, soltou os bichos e ateou fogo à lona.

As labaredas logo tocaram o céu e iluminaram a noite. A cidade inteira acorreu ao local feito insetos em volta de uma lâmpada. Um espetáculo inesquecível.

O pipoqueiro vendeu como nunca.

375. verso

"Amargo era o travo do beijo que não me deste ", escreveu o poeta no guardanapo e pediu mais um Expresso. A garçonete corou como se ele lho tivesse dito e perguntou:

- Amargo?
- O beijo? – ele quedou surpreso.
- O café.
- Ah!

18 fevereiro, 2009

374. yara

Meia–noite. Lua cheia alta no céu a refletir na superfície líquida da represa. Insone tomo a fresca. E fumo. Nem uma brisa. As águas estão calmas, límpidas, um grande espelho. Nelas diviso apenas um contraste: um tronco boiando, acho. Um tronco? Espera aí! Será aquilo um tronco mesmo ou estarei a ver coisas? Parece mais um.... Deus meu! Um corpo. Sim, sem dúvida é um corpo.

Decido que devo averiguar. Cogito que seja de alguém conhecido; mas pelo o que me consta não correu boato algum no povoado de que alguém tenha sumido nas últimas horas.

Apago o cigarro no piso de concreto da barragem. Tiro as botinas, dispo-me. Um arrepio encrespa-me os pelos.

O nível da represa está baixo. Desço cauteloso, pé ante pé, pela escadinha de vergalhões de ferro enferrujada e toco com o indicador a água morna. Benzo-me três vezes.

Nado. Sou um bom nadador. Fui criado na beira do rio quando ainda não o haviam represado.

Trinta braçadas a frente deparo-me com o afogado. É um rapaz. Magro, porém musculoso. Dever ter no máximo uns dezoito anos. Está nu como eu e no seu rosto ainda imberbe diviso um estranho sorriso.

Enlaço o seu pescoço, tento arrastá-lo para a margem, em vão. Percebo que algo o prende pelo pé direito. Uma rede? A pesca está proibida mas há sempre quem se arrisque.

Largo o corpo, encho os pulmões e mergulho. Dou a volta por baixo do corpo e ...

Dou de cara com Ela. É ela que o prende.

Formas perfeitas. Metade peixe, metade mulher, bela como os velhos pescadores costumam descrevê-la. Os olhos faíscam como pedras verdes e a língua lasciva desliza pelos lábios rubros e sensuais.

Canta. Que reside no canto o seu poder de sedução. Foi dessa forma que atraiu este coitado, e é assim que ela tenta me enfeitiçar.

Canta. Suponho que seja uma melodia indescritível. Pena que eu não possa ouvi-la: nasci deficiente auditivo. Imerso no mais profundo silêncio.
publicado na revista terrorzine:

373. a marca

Procurei marcas de batom na camisa e achei. Uma. Oculta sob o colarinho. E não era dos meus que jamais uso carmim. Em segredo chorei. Aquela noite não fizemos sexo pois ele não me procurou; e se o fizesse eu me vingaria inventando uma enxaqueca. Mas já relevei. Sou assim. É meu jeito. Não guardo ressentimento. Faz-me mal. A camisa? Lavei-a, passeia-a, pendurei no armário. Meu marido, quando voltar de viagem, nem vai notar que ele a pegou emprestado.

372. o aprendiz

-Eu vendi gelo para um esquimó.
- Parabéns! O próximo!
- Eu vendi areia para um xeique em Dubai.
- Muito bom! E você???
- Eu? fui com ele. E vendi preservativos pros eunucos.

371. rotina

Envelheceu. Agora vai mais à igreja. Não que tenha ficado mais religioso a esta altura da vida, não. – as missas de sétimo dia dos amigos é que viraram rotina.

370. quase silêncio

ajo sempre na calada: ao silenciá-lo - infame trocadilho - usei do silenciador para abafar seus possíveis ais. quem cala consente. creio que calei-o mesmo sem o seu consentimento. deu com a língua nos dentes recheados de amálgama e assinou sua sentença, o iscariotes. às três da madruga o tempo lá fora contradiz como sempre as previsões meteorológicas que teimo em ouvir. entro sem bater, sem pedir licença, para sua surpresa e pavor. estampado no rosto ao me reconhecer uma quase-súplica por piedade - a clínica de lipoaspiração vazia àquela hora erma. a mão traiçoeira larga o mouse e sob a mesa alcança o cabo madrepérola de uma pistola. "ploft!". sou bem mais rápido e preciso. na tela do computador uma singela proteção de tela com peixinhos doirados e corais. na parede agora maculada o pôster da enfermeira com o indicador nos lábios sensuais pede silêncio. esse tipo de coisa me excita. saio furtivo.
*. publicado no site: www.usinadaspalavras.com

23 janeiro, 2009

369. o apóstolo do mês

Três apóstolos apregoavam seus feitos. Um deles seria escolhido como O Apóstolo do Mês e teria seu nome gravado na entrada do Templo.

O primeiro, brincalhão, disse: Senhores, vendi o almoço pra comprar a janta. Houve variação na bolsa, o preço dos alimentos caiu no fim da tarde. Lucrei quinze sestércios.

O segundo, homem em quem não se podia confiar, confessou sem escrúpulos: Já eu, vendi meu mestre por trinta moedas. Saí no lucro. Há profeta demais na Palestina. Muita oferta, pouca procura.

O terceiro, normalmente homem de pouca fé, surpreendeu:

Eu arrisquei na bolsa de apostas dos fariseus e estourei a banca! Acertei que Ele ressuscitava em três dias. Eu sou o cara!

368. pena

No ginásio ainda ele roubou-lhe um beijo. Depois, mais tarde, roubou uma rosa e lhe deu de presente. Não demorou tomou de assalto o seu coração. Agora envelhecem juntos e ele deu para se queixar: parece que cumpro pena.

367. erro médico

- Errei. – admitiu o médico. Os azuis acinzentados baixos sob as lentes denotavam humildade. Qualidade que o seu interlocutor jamais imaginou que ele tivesse.

O oficial comandante do Campo, homem forjado na dura disciplina, porém, não o repreendeu. Ao contrário foi paternal, tocou-lhe o ombro respeitoso e solidário e quis dizer-lhe, como se diz nessas horas como apoio ao faltante ou por mera falta do que dizer, que errar é humano; mas a frase, no seu entender, não era a mais adequada. Em suma humanidade não combinava mesmo com aquele médico de reconhecidas fama e competência.

- O homem sábio sempre aprende com os erros – incentivou-o – Continue tentando, Dr. Mengele.

366. erudição

Ela faz palavras cruzadas. Ele lê o caderno de esportes.

- Benhê, o que é Clássico? Com sete letras.

Ele, sem desviar os olhos da matéria, sorri. Adora ser consultado. Satisfaz muitíssimo o seu ego. Além de atestar, acredita, a sua inegável supremacia de macho.

- Taí! De Clássico, amor, eu entendo. Vou te dar um exemplo: por coincidência estou lendo justamente uma reportagem sobre o clássico que vai rolar hoje no Pacaembu. Corinthians versus São Paulo. Isso é clássico, entende? Jogo de primeira. Briga de cachorro grande. Duelo de titãs.


Ela rabisca que rabisca e Ele viaja:

- Outro exemplo, veja, é a música clássica. Só bacana curte este gênero. Pra ouvido refinado, de intelectual, entende? Pagodeiro, se entra no Teatro Municipal, fica logo constrangido, deslocado, desfocado.

Ela está concentrada. Parece que não ouviu nada da dissertação na qual ele tanto se empenhou.

Ele percebe e se queixa:

- Amor! Você faz uma pergunta, eu respondo, e você nem aí!

- Ah! Brigadinho, bem. Já achei. Erudito.

- Era o Dito?

- Isso aí.

365. trem da morte

Lugo buscava aventuras. Mochila às costas tomou o Trem da Morte e rumou para Machu Pichu. Faria a Trilha Inca. Viagem cansativa, estafante, a certa altura levantou-se para esticar as pernas e logo entabulou um papo em legítimo portunhol com o maquinista, um sujeito simpático, meio índio. Falavam de futebol, pra variar, quando numa curva surgiu de repente no meio da linha, a face oculta por um chapéu de palha rústico, uma anciã esquálida e encurvada.

Não houve tempo de frear nem nada. O baque esperado não veio. A locomotiva, centopéia de aço, seguiu em frente.

Lugo quase desmaiou. Quando conseguiu se recompor, estranhou que o semblante do maquinista sequer tivesse se alterado.

- O que fue... aquillo, compañero?

- Que?

- La vieja!

-Ah! – Riu o homem com a naturalidade de quem já se acostumara com as manifestações do inusitado. E disse-lhe: - És la muerte, muchacho. Pide aventón*

*.carona

09 janeiro, 2009

364. Dom Serafim, El-Rey


363. hai kai n.12

Língua de fora
Gravata rósea
Cão a rigor.

362. hai kai n.11

Braços erguidos
Mandacaru se rende
Aos teus encantos.

361. hai kai .10

Sobre o tumulo do avô
A avó circunspecta
Pratica ikebana.

360. hai kai n.9

Havia no caminho
Uma pedra - de vesícula
Que rima ridícula.

359. hai kai n.8

Moço analfabeto
Mandou-me um bilhete:
Era um origami.

358. a vontade férrea de Dom Arturo

Dom Arturo Gamboa Bastos Garcia y Garcia gabava-se de ter antes de qualquer coisa uma vontade férrea. Um dia, por exemplo e para dar exemplo, decidiu parar de fumar e nunca mais, nem por brincadeira, botou um cigarro na boca. e se o fez foi mais por razões de cunho financeiro que por problemas de saúde (era forte como um touro) que por desventura viesse a ter: Pôs no papel, fez os cálculos e concluiu que, ao fumar um maço por dia dos 17 aos 55 anos gastara com os malditos cigarros a vultosa quantia de 280 mil robledos. uma pequena fortuna que o teriam feito um prospero e respeitável estancieiro.

daquela sua fase cinza de fumante inveterado, porém, restara-lhe o inarraigável costume de trazer sempre entre os dedos médio e indicador da sua mão direita algo que melhor se adequasse e preenchesse o vazio do antigo objeto do seu vício. esse substituto, ele logo descobriu, seria um bastonete de giz branca desses que as professoras primária esgrimam com perícia no exercício da sua nobre missão de formar as futuras gerações.

Aposentado, viúvo, a diversão de Don Arturo agora era toda tarde jogar bilhar com os velhos companheiros.Foi ali, no salão Bolas de Ouro, que descobriu a real utilidade dos seus inseparáveis bastonetes brancos: passou a usá-los também para anotar na pequena lousa verde o resultado das acirradas partidas que disputavam. Como essas disputas estendiam-se até alta madrugada, logo Don Arturo, sem que percebesse, começou a comprar cada vez mais e mais caixas de giz. Fato é que dos 56 aos 88 anos, quando parou definitivamente de jogar por causa do Alzheimer que não lhe permitia mais firmar o taco, calculou ter gastado pra bem mais de 200 mil robledos; outra pequena fortuna que lhe teria permitido tornar-se, dessa vez, não um próspero fazendeiro - que com gado e mulher já não tinha paciência; mas um... não! chega! não queria tornar-se mais nada. Mesmo porque, independente das vicissitudes, só lhe restava, biblicamente falando, tornar-se pó. pó igualzinho aquele que se desprendia do giz com que gastara as economias que economizara ao largar o fumo vinte e dois anos antes.

357. portuárias

Mareado de tanta solidão, encontrou finalmente num bar de um porto movimentado a mulher da sua vida. Uma oportunidade única. Não podia perde-la. Chamou-a à sua mesa, pagou-lhe uma bebida, fizeram amor em um quarto sujo no andar de cima.

"Por você abandono o mar", confessou enquanto fumava vendo pela persiana dentro da escuridão as luzes do navio em que servia fundeado na baía.

"Sei" sorriu a mulher. Enquanto se vestia disse-lhe o que teria dito a qualquer marujo:

"Nunca deixe de sonhar, garoto"

E desceu as escadas para ser a mulher da vida de um outro.

356.culpa e expiação

quando foi preso era inocente. disse-lho desesperadamente às autoridades, à população, mas ninguém lhe acreditou. foi julgado e condenado a dez anos e no cárcere restou-lhe contar dias e as horas e nutrir-se de um ódio profundo do qual não imaginava ser capaz.

ao sair tinha em mente que na sua história faltava algo sem o que a justiça quedaria desacreditada e cometeu um crime. pronto: eles pediram e ele agora era de fato culpado. pagara com antecedência, é verdade, mas era finalmente culpado.

seu crime, porém, fora algo planejado e premeditado. quase perfeito. aproveitara brechas na lei emendada e remendada dos homens para se delinear. o punhal na mão de um terceiro, o dinheiro sujo na conta de outro e tudo se resolveu.

a inteligência limitada dos homens deu voltas em torno de si como um cão buscando o rabo e nada descobriu. e ele finalmente se sentiu vingado e aliviado daquele ódio antigo. todavia sua consciência ainda pesa, e ele tenta se convencer de que o tempo do arrependimento ficou lá, no fundo daquela cela.