30 abril, 2009

420. lux

Nove meses depois do Blecaute ela deu à luz.

419. o que poderia ter sido

Aquela última noite em Angicos, Maria Bonita sonhou que vivia em Jeremoabo com seu primeiro marido, Zé de Neném, homem bom, honesto mas estéril e sem pulso. Tinham ambos por volta de setenta anos de idade e número idêntico de descendentes (os sonhos são tão confusos). Estavam ambos sentados na varanda da fazenda. Ela, trabalhando os bilros num labirinto de renda; ele picando fumo, enrolando um cigarro de palha. Papeavam:

- Tivesses eu perdido a cabeça indo com “aquele homem”, meu velho, nada disso estaria acontecendo agora.

- De cabeça não me fale que chapéu não faço, Maria Déia. Sou sapateiro e vou morrer sapateiro.

29 abril, 2009

418. romantismo

Tem mau hálito, maus hábitos, um Passat velho caindo aos pedaços e me chama de Creuza (meu nome é Cleuza). Mas não abro mão dele não, minha filha, que homem homem mesmo é produto raro de se achar hoje em dia. Nunca me trouxe flores, é bem verdade. Mas fazia questão de abrir (e fechar) a porta do carro para mim, como todo cavalheiro que se preze. As minhas amigas morriam de inveja. Achavam o máximo. Isso até o enxerido do meu primo, que é mecânico quebra-galho, consertar, a troco de cerveja, a bendita porta. Filho da mãe! Assim, não há romantismo que resista, concorda??

28 abril, 2009

417. prova

O golpista, que juntamente com um cúmplice infiltrado na Previdência Social sacava provimentos de velhinhos aposentados já falecidos, bem que tentou negar seu crime; mas ao revistarmos sua casa encontramos entre os seus pertences um exemplar de "Almas Mortas" de Nicolai Gogol.

416. breve ensaio sobre a cegueira

Ela passava a sua frente pontualmente às sete e trinta. Pelo perfume ele podia traçar perfeitamente o seu perfil: uma Deusa. E então fantasiava: sonhava com o dia em que, ao tentar cruzar a faixa, ela viesse e o conduzisse pelo braço até o outro lado da avenida. Ou bem mais longe, se fosse o caso, que com ela iria até para o inferno.

Ontem pela manhã, cheio de coragem, teceu-lhe um elogio. Ela sorriu. Sentiu-o no vento pela mudança brusca da sua respiração.

Hoje foi mais ousado, senão atrevido: fez-lhe uma proposta no mínimo indecorosa.

“Vê-se te enxerga!”, ela respondeu no revide. Mais bela ainda quando brava.

415. bastardias

"Eu era uma cunhã infeliz e mal amada ", confessou-me ela em guarani, como costumam fazer os paraguaios quando querem evitar os bisbilhoteiros - naquele caso os repórteres dos mais diferentes órgãos de imprensa que sufocavam-nos de microfone em riste.
"Meu marido me batia freqüentemente, me humilhava diante dos outros, me mandava tomar naquele lugar... um dia mandou que eu me queixasse ao bispo. Foi a melhor sugestão que ouvi daquele canalha em cinco anos juntos. O bispo é um homem afável, carinhoso, e soube me confortar"

414. a invasão

Os aguerridos militantes do Movimento dos Sem Terra, foices em punho, avançaram vorazes sobre o latifúndio improdutivo, fincaram estacas, armaram tendas de plástico negro, tomaram posse, organizaram a resistência. Esperaram. Passou-se uma semana, quinze dias, um mês e os seguranças armados do fazendeiro, estranhamente, não apareceram. Assim como a polícia, que deveria cumprir a reintegração de posse emitida por um juiz notadamente parcial. Como aquela calmaria toda os inquietasse eles acharam prudente montar um bloqueio na confluência da estrada vicinal com a principal para que ninguém viesse a cruzar aquelas terras. Meses se passaram sem que vivalma tentasse passar por ali.

Ao fim do oitavo mês, por ordens da liderança nacional do movimento ou por iniciativa própria, eles desarmaram as tendas, juntaram seus pertences e marcharam para o norte. No céu límpido daquela quinta-feira, os pássaros, descaradamente subservientes aos valores da burguesia emergente, faziam justamente o contrário.

413. olhos

Quando abriu os olhos percebeu que dentro deles não haviam esmeraldas. Nem mesmo turmalinas sem valor. Decepcionado guardou a faca e atirou-os, vazados, aos peixes. Aqueles, porém, simplesmente os ignoraram.