18 fevereiro, 2009

374. yara

Meia–noite. Lua cheia alta no céu a refletir na superfície líquida da represa. Insone tomo a fresca. E fumo. Nem uma brisa. As águas estão calmas, límpidas, um grande espelho. Nelas diviso apenas um contraste: um tronco boiando, acho. Um tronco? Espera aí! Será aquilo um tronco mesmo ou estarei a ver coisas? Parece mais um.... Deus meu! Um corpo. Sim, sem dúvida é um corpo.

Decido que devo averiguar. Cogito que seja de alguém conhecido; mas pelo o que me consta não correu boato algum no povoado de que alguém tenha sumido nas últimas horas.

Apago o cigarro no piso de concreto da barragem. Tiro as botinas, dispo-me. Um arrepio encrespa-me os pelos.

O nível da represa está baixo. Desço cauteloso, pé ante pé, pela escadinha de vergalhões de ferro enferrujada e toco com o indicador a água morna. Benzo-me três vezes.

Nado. Sou um bom nadador. Fui criado na beira do rio quando ainda não o haviam represado.

Trinta braçadas a frente deparo-me com o afogado. É um rapaz. Magro, porém musculoso. Dever ter no máximo uns dezoito anos. Está nu como eu e no seu rosto ainda imberbe diviso um estranho sorriso.

Enlaço o seu pescoço, tento arrastá-lo para a margem, em vão. Percebo que algo o prende pelo pé direito. Uma rede? A pesca está proibida mas há sempre quem se arrisque.

Largo o corpo, encho os pulmões e mergulho. Dou a volta por baixo do corpo e ...

Dou de cara com Ela. É ela que o prende.

Formas perfeitas. Metade peixe, metade mulher, bela como os velhos pescadores costumam descrevê-la. Os olhos faíscam como pedras verdes e a língua lasciva desliza pelos lábios rubros e sensuais.

Canta. Que reside no canto o seu poder de sedução. Foi dessa forma que atraiu este coitado, e é assim que ela tenta me enfeitiçar.

Canta. Suponho que seja uma melodia indescritível. Pena que eu não possa ouvi-la: nasci deficiente auditivo. Imerso no mais profundo silêncio.
publicado na revista terrorzine:

373. a marca

Procurei marcas de batom na camisa e achei. Uma. Oculta sob o colarinho. E não era dos meus que jamais uso carmim. Em segredo chorei. Aquela noite não fizemos sexo pois ele não me procurou; e se o fizesse eu me vingaria inventando uma enxaqueca. Mas já relevei. Sou assim. É meu jeito. Não guardo ressentimento. Faz-me mal. A camisa? Lavei-a, passeia-a, pendurei no armário. Meu marido, quando voltar de viagem, nem vai notar que ele a pegou emprestado.

372. o aprendiz

-Eu vendi gelo para um esquimó.
- Parabéns! O próximo!
- Eu vendi areia para um xeique em Dubai.
- Muito bom! E você???
- Eu? fui com ele. E vendi preservativos pros eunucos.

371. rotina

Envelheceu. Agora vai mais à igreja. Não que tenha ficado mais religioso a esta altura da vida, não. – as missas de sétimo dia dos amigos é que viraram rotina.

370. quase silêncio

ajo sempre na calada: ao silenciá-lo - infame trocadilho - usei do silenciador para abafar seus possíveis ais. quem cala consente. creio que calei-o mesmo sem o seu consentimento. deu com a língua nos dentes recheados de amálgama e assinou sua sentença, o iscariotes. às três da madruga o tempo lá fora contradiz como sempre as previsões meteorológicas que teimo em ouvir. entro sem bater, sem pedir licença, para sua surpresa e pavor. estampado no rosto ao me reconhecer uma quase-súplica por piedade - a clínica de lipoaspiração vazia àquela hora erma. a mão traiçoeira larga o mouse e sob a mesa alcança o cabo madrepérola de uma pistola. "ploft!". sou bem mais rápido e preciso. na tela do computador uma singela proteção de tela com peixinhos doirados e corais. na parede agora maculada o pôster da enfermeira com o indicador nos lábios sensuais pede silêncio. esse tipo de coisa me excita. saio furtivo.
*. publicado no site: www.usinadaspalavras.com