23 setembro, 2011

655. star

Dedos apontavam-me nas ruas. Mas isso foi antes das verrugas nascerem. Minha mãe, coitada,morreu sem entender o seu caos interior, sem me ver crescer e se transformar em uma estrela.

654. fera

A solidão é fera - lamentou o velho domador - Depois que o circo fechou, todo dia me devora.

653. fim da linha

Depois de muitos anos voltaram a se sentar, um ao lado do outro. Foi no banco azul do metrô destinado aos passageiros idosos. Não se reconheceram. Ou apenas fingiram como fizeram a vida toda. O Alzheimer? Bem, poderia ser uma boa desculpa para quem dela se utilizasse primeiro. Mas o que importava era que tinham uma nova oportunidade. De ouro. Era pegar ou... O serviço de alto-falante, podou-lhe as intenções anunciando: " Fim da linha. Este trem será recolhido."

652. dia sem carro

Era o Dia Sem Carro. E ele mais que qualquer um estava convencido disso embora não tivesse lido os jornais ou assistindo à TV. Sentado no meio fio daquela travessa de pouco movimento contemplava desolado e impotente a vaga onde meia hora antes havia estacionado o carro cujas prestações ainda estava a pagar.Transportava para dentro de si aquele vazio intragável quando ateve-se a uma poça escura de óleo no meio da vaga. Adivinhou nela o formato de um pássaro negro (um corvo? um abutre?). Persignou-se. Definitivamente, aquele não era o seu dia de sorte.

651. lapsos

Aquela altura da vida, com o claro intuito de provocá-la, ele disse - em alto e bom-tom porque ela estava ficando surda.

- Verdes. Os olhos da minha amante são verdes, ouviu? Lindos. Duas esmeraldas.

Ela deteve-se no arremate do ponto de crochê, olhou-o de soslaio e sentiu pena. Não iria negar-lhe o prazer de humilhá-la que era o que o mantinha vivo. Sabia-o, desde os primórdios, daltônico. E agora tinha também, com cada vez mais frequência, aqueles lapsos de memória...