07 julho, 2009

452. o despertador

Quando acordou o despertador ainda estava ali. E apenas ele e mais nada naquele quarto de alvas paredes caiadas. Maldito objeto metálico cromado e inanimado travado em suas engrenagens - que era à corda, antigo, feito para interromper sono e sonhos. Sem o impulso essencial seus ponteiros sobrepostos marcavam a intemporalidade das coisas e dos seres. Quis apalpar os bolsos, procurar por um canivete ou chave ou trinco com que pudesse desmontá-lo, mas não percebeu que isso não era possível já que estava nu; e ao descobrir-se assim sentiu-se profundamente exposto e fragilizado como quando foi abandonado na roda dos enjeitados da Santa Casa da Misericórdia. Desesperou-se. Teve uma crise que alternava choro e riso que cessou quando sentiu náuseas e não verteu a última refeição. Dentro si, suspeitava, havia apenas pequenos troços sem consistência, que podiam ser ou não resquícios de uma tristeza mal-digerida . O despertador ainda estava ali, intacto, a ocupar o espaço que lhe cabia dentro daquele quarto sem saída (pensava em saída porque queria fugir dali o mais rápido que pudesse). Tinha pressa mas seus movimentos eram lentos como se movimentasse dentro de um aquário, como se fosse um peixe nu que sonhasse com a amplidão de um oceano. O segredo, a chave que lhe abririam portas imperceptíveis ao seu olho só podiam ser encontrados na combinação daqueles números romanos dispostos em círculo no mostrador. Era uma hipótese a considerar. Mas também não se podia descartar a possibilidade de que as respostas estivessem nele mesmo misturadas àqueles já citados pequenos troços amorfos que por dentro sentia.O despertador inutilizado talvez nem exista como objeto, pensou. Pode ser um símbolo, a representação terrena do deus Chronos, um signo, um significado do que não consigo compreender. Um tempo esgotado, diluído, reduzido ao pó terminal de que falam as escrituras. Num ímpeto ele atirou o despertador contra uma daquelas paredes brancas como túmulos e ao vê-lo não encontrar resistência nem força gravitacional que lhe abrandasse a trajetória e ricochetear e tomar a direção do teto, e depois descer ao piso, e traçar feixes retos ligando ângulos e superfícies como um cometa no vácuo das galáxias, tudo compreendeu. Aquele despertador era o seu coração.

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