14 abril, 2009

405. devoto

Outra vez a seca. Cíclica. No peito do sertanejo acossado pelo flagelo sentimentos antagônicos de resignação e revolta.

A velha da foice ronda por ali impaciente, a mão descarnada no punho da redinha de coroá onde o menino, coitadinho, olhos tão fundos, quase anjo. Pusessem-lhes duas asinhas de avoante e voaria no mesmo instante para junto de Nosso Senhor. Daquela noite não haverá de passar. Carece pois que o batizem logo para que não morra pagão. Um nome têm: Manoel. Água, não. Nem pra remédio, quanto mais pra batismo. Talvez a umas dez léguas, no Poço do Peba, mas até lá... Há quem sugira um punhado de areia fina do leito seco do Riacho do Mato . Ou cuspo grosso, escuro, da boca mascadora de fumo do avô, também Manoel.João, o pai, impotente vai até o alpendre, fuma, pensa que pensa, repensa. De repente lembra-se de algo. Sem nada dizer desaparece capoeira adentro. Some.

Endoideceu de tristeza, dizem lá de dentro, sem surpresa. Loucura é só uma das conseqüências da fome.Mas João volta logo. Consigo traz uma moringa de barro.Água? Mel de Jandaíra? Perguntam em uníssono os ávidos familiares, quase a saltarem-lhe encima.É cachaça, contraria-os. Do engenho da Calabaça. Enterrei ali junto do mourão da cerca pra pegar mais gosto. Faz tanto tempo que tinha inté me esquecido...O pequeno Manoel é então batizado com aguardente. Batiza-o o avô. E o menino quase-anjo frustra o desengano sobrevivendo àquela e tantas outras estiagens.Tá aí a prova, aponta Zefa, sua esposa, cinqüenta anos depois. Cuia ruim, meu filho, não quebra não. Por isso devoto da cachaça até hoje.

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