14 maio, 2009

436. o mártir

Embora eu seja magro, delgado mais para o raquítico, foi-me deveras penoso compartilhar o assento do ônibus com aquela senhora de massa corporal avantajada. Injusto compartilhamento: três quartos para ela, um para mim. Como o percurso a ser percorrido levava algumas horas, ao longo delas, por tal penitência não declarada pelo pároco da nossa freguesia, desconfio que tenha zerado finalmente a minha cota de culpas e pecados veniais. Trocamos poucas palavras. Explico: a minha companheira de viagem não era lá de conversar muito e percebi que ocupava melhor suas mãos e boca com outra atividade mais dinâmica: a da ingestão. Seus maxilares davam duro sob as papadas e pareceram-me rodas dentadas, engrenagens azeitadas de uma verdadeira máquina de triturar.

Ao desembarcarmos na estação da Praça Garibaldi, senti-me como um mártir cujo corpo tivesse sido submetido a, digamos, um torturante espremedor de laranjas ( pergunto-me como foi que os inquisidores não tiveram esta brilhante e sádica idéia) e desabafei com um suspiro de profundo alívio:

“Descei sobre nós, ó Espírito Santo!”

Algumas velhinhas que também desciam do nosso ônibus, testemunhas oculares do meu triste martírio, se persignaram ou beijaram com fervor seus escapulários quando, não por um alto desígnio do divino, mas por causa das tantas migalhas impregnadas no meu terno, cabelos e bigode, uma revoada de pombos desceu sobre mim.

Nenhum comentário: